O mesmo governo brasileiro que critica, com razão, as ações do governo norte-americano deveria apresentar garantias de que não espiona os seus cidadãos, cobra professor da UFPB
José Rodrigues Filho *
Diferentemente de outros países, o discurso de espionagem no Brasil está sendo elaborado mais pelo governo do que pelas oposições. Este fato é até certo ponto estranho, considerando que a espionagem aumentou substancialmente nos últimos anos, diante dos elevados investimentos do governo federal em tecnologias de controle e espionagem. Assim sendo, à medida que se aumentam os investimentos em tecnologia de informação, crescem também a espionagem, a insegurança e a dependência do Brasil perante os países desenvolvidos. Isso sem falar na infiltração de agentes de espionagem dentro do país, por conta de acordos bilaterais na área de inteligência.
Consequentemente, o próprio governo é, em parte, responsável pela espionagem, por facilitar a introdução de determinadas tecnologias de controle e espionagem, sem o mínimo cuidado de avaliá-las. Aliás, foi no governo petista que foram feitos grandes investimentos nestas tecnologias. Mesmo assim, a presidente Dilma aproveitou o momento de seu baixo desempenho político, diante das pesquisas, e conseguiu, em cima do discurso de espionagem, elevar seus índices de popularidade.
As publicações, na mídia, sobre o tema serviram de apoio para que a presidente Dilma falasse perante a ONU sobre a espionagem no país, incluindo a comercial e industrial. Para os países desenvolvidos, este discurso não tem eco, visto que a espionagem comercial e industrial é uma prática antiga entre eles. Em resumo, o discurso de Dilma em nada afetou ou vai afetar as relações entre Brasil e Estados Unidos, já que era reconhecida a necessidade de um discurso político para elevar índices de popularidade para as eleições que se aproximam. No dia seguinte ao discurso, realizado na sede da ONU em Nova York, a presidente Dilma se reunira com empresários americanos para tratar de investimentos no Brasil, numa demonstração de que nada tinha acontecido. Ao que parece, nesta última Assembleia da ONU, o único país que parece ter tratado também da espionagem foi a Venezuela, através do discurso de um representante do presidente Maduro.
Enquanto a espionagem atingia, inicialmente, milhares de brasileiros, por meio da invasão de seus direitos humanos, não aconteceram discursos contundentes de parte do governo. Contudo, a partir do momento em que a própria presidente Dilma foi afetada bem como outras instituições públicas, o governo não poderia também se mostrar tão subserviente. Mesmo assim, internamente, Dilma saiu-se fortalecida, levando a espionagem a se tornar um bom discurso de campanha política, que a oposição não quis ainda aproveitar. Na prática, é possível que nada aconteça, a não ser a criação de algum marco legal, sem nenhum efeito para a sociedade como um todo.
Se durante mais de dez anos, milhares de pessoas no mundo inteiro tiveram sua privacidade invadida, sem as devidas garantias ou salvaguardas, por conta da espionagem de busca de terroristas, não podemos imaginar que o discurso da presidente Dilma na ONU sobre espionagem, comercial ou industrial, tenha algum efeito sobre a ética nos negócios no mundo, até porque a espionagem comercial e industrial é mais antiga do que a espionagem de busca de terroristas.
Mas, como tratar a espionagem diante dos avanços tecnológicos? Está o governo utilizando seu acervo tecnológico de controle para espionar os cidadãos brasileiros? A relação entre ética e espionagem no Brasil é a mesma entre ética e corrupção? Quais as garantias legais que o governo está oferecendo aos cidadãos brasileiros, usuários de tais tecnologias? Pelo que se observa, a lei não consegue barrar que centenas de servidores tenham acesso a informações privadas de cidadãos, a exemplo do que já ocorreu no âmbito da Receita Federal. Que garantias temos, enquanto usuários da urna eletrônica e do recadastramento biométrico, quando se sabe que o próprio TSE já tentou repassar nossas informações para uma empresa privada internacional?
Nos dias de hoje, com seu acervo tecnológico, o Estado está tendo poderes como nunca e, por conta disto, é necessário um debate público sobre o assunto, de modo que se possam estabelecer limites. Criticar a espionagem externa sem fazer o dever de casa é um exercício fútil. O discurso da espionagem só tem sentido se tentar relacionar o nosso acervo tecnológico com a insegurança, a dependência e a invasão de privacidade a que estamos submetidos. Este tipo de discurso parece ser mais das oposições do que do próprio governo.
* Professor da Universidade Federal da Paraíba. Foi pesquisador nas Universidades de Harvard e Johns Hopkins (EUA). Mantém o blog http://jrodriguesfilho.blogspot.com/.