POLÊMICA: Livro sobre o paraibano Vandré desfaz mito do artista torturado

Biografia de Geraldo Vandré desfaz mito do artista torturado
Livro conta saga do recluso cantor e compositor e mostra um poeta lúcido até hoje
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POR SILVIO ESSINGER

Geraldo Vandré, em 1968, no Festival Internacional da Canção – Arquivo / O Globo

RIO – Na música brasileira, os destinos às vezes se cruzam das formas mais impressionantes. Um exemplo: no ano de 2000, no hospital, uma das últimas visitas que Wilson Simonal recebeu pouco antes de morrer foi do seu oposto ideológico: Geraldo Vandré. Em comum, estava o fato de que, naquela época, tanto o cantor “alienado”, que lutava para se livrar da acusação de ser dedo-duro a serviço dos militares, quanto o artista que foi perseguido pela ditadura por causa da canção “Pra não dizer que não falei das flores” (também conhecida como “Caminhando”), eram cartas fora do baralho, figuras fantasmagóricas da MPB, apesar de enorme popularidade que tiveram até o começo dos anos 1970.

— A diferença é que, enquanto Simonal não teve opção, Vandré escolheu se retirar — explica o jornalista mineiro Jorge Fernando dos Santos, que lança amanhã no Rio (na loja Bossa Nova & Companhia, em Copacabana) “Vandré: o homem que disse não” (Geração Editorial), biografia não autorizada do cantor e compositor que completou 80 anos em 12 de setembro como um dos personagens mais misteriosos da cultura nacional do último século.

Surgido para o grande público em 1966, quando sua “Disparada”, interpretada por Jair Rodrigues, empatou em primeiro lugar com “A banda”, de Chico Buarque, no II Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, o paraibano Geraldo Vandré voltaria à carga dois anos depois com “Caminhando”, canção abraçada pela juventude universitária de esquerda, que, indignada com o segundo lugar obtido no II FIC, vaiou a canção vencedora daquele edição, “Sabiá”, de Chico e Tom Jobim.
Capa do livro de Jorge Fernando dos Santos – Reprodução / Reprodução
Censurada a sua música pelo governo militar (que se encaminhava para endurecimento do AI-5), Vandré fugiu do país e só voltou em 1973, mudado. E aos poucos foi se retirando da vida pública. Praticamente parou de compor música popular (veio com o poema “Fabiana”, em homenagem à Aeronáutica, de que se aproximou ao longo dos anos), negou entrevistas (até mesmo para biógrafos) e, nas poucas vezes em que falou à mídia, disse que sua história “é secundária”. Sua última aparição pública foi no ano passado, quando subiu ao palco da cantora americana Joan Baez, que interpretava sua “Caminhando”.

— Não se tem o direito de negar a história de Geraldo Vandré — defende Jorge Fernando, que em 1979, ganhou um concurso de textos sobre Vandré promovido por um jornal e que acabou, aí, se decidindo a ingressar no jornalismo.

BIOGRAFADO NÃO DEU ENTREVISTA

Autor de livros diversos, ele sempre pensou em escrever uma biografia, mas faltava o personagem. Até que em 2013, depois de ir a Foz do Iguaçu (onde Vandré morou), teve o clique e começou as pesquisas. Fez algumas entrevistas com pessoas próximas, vasculhou dados e esbarrou na recusa do artista a ser entrevistado. Ele diz que outros trabalhos biográficos (como o livro “Geraldo Vandré — Uma canção interrompida”, que o escritor Vitor Nuzzi lançou de forma independente e com tiragem limitada a 100 exemplares), “adiantaram bem o trabalho”, bem como teses de mestrado.

— Paralelamente à história do Vandré, reconstituí a saga política do Brasil desde os anos 1930 — conta Jorge Fernando, para quem “Caminhando” “é a crônica de uma época”. —Vandré dizia: ‘Fiz uma canção com dois acordes para ganhar o festival’. A música acabou se transformando num hino, e não era um hino.

Das páginas de “O homem que disse não” sai o compositor de uma obra intensa, poética, mas com pouco recurso a metáforas. Um músico com grande influência da cultura nordestina, que leva a viola para o festival. E que atinge o ápice de sua obra com “Disparada”, composição regravada por artistas que vão da dupla caipira Tonico e Tinoco à cantora e atriz italiana Ornella Vanoni.

— Vandré estava muito à frente daquele povo da música popular no momento dos festivais — avalia o autor. — As pessoas acham que a música dele é muito simples. Na verdade, as melodias são, mas as harmonias e os ritmos são rebuscados. O Vandré é um esteta, muito poético e direto, como é a boa música do Nordeste. Ele é um compositor que viveu a transição do bolero para a bossa nova e depois se voltou para as raízes dos cantadores, da música caipira, ao fazer a trilha para o filme “A hora e vez de Augusto Matraga” (1965, de Roberto Santos).

Desvelando os problemas psicológicos que Vandré sofreu no exílio, Jorge busca no livro desfazer “o mito de um Vandré torturado, martirizado, que sofreu lavagem cerebral”. E garante:

— Atrás da aparente loucura existe um homem extremamente lúcido que acompanha tudo. Inteligente, egocêntrico, que não se submete.

O escritor chegou a mandar um exemplar do livro, com dedicatória, para que a irmã do artista a entregasse a ele. Mas não tem certeza de que o recluso personagem o leu.

— Segundo amigos e parceiros, ele continua escrevendo poemas que não mostra para ninguém. Tudo o que sei é que o Brasil precisa descobrir a obra de Geraldo Vandré — diz.

“Vandré: o homem que disse não”

Autor: Jorge Fernando dos Santos.

Editora: Geração Editorial.

Páginas: 280.

Preço: R$ 39,90.

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Trecho de “Vandré: o homem que disse não”

“Em 4 de outubro, ao ouvir boatos sobre a proibição de ‘Caminhando’, Vandré declara: ‘Minha canção diz tudo o que penso e por isto me responsabilizo por ela. Cantarei em qualquer lugar onde haja um violão, pois minha função é cantar. ‘Caminhando’ não é uma canção de guerra e os versos ‘nos quartéis se aprende a morrer pela Pátria e viver sem razão’ não se referem somente a militares, mas é um modo de me exprimir para explicar todo tipo de profissão que restringe as pessoas a um certo modo de vida… Aliás, muitos militares concordaram com os meus versos’.

Dois dias depois, o ‘Jornal do Brasil’ publica um artigo assinado pelo general alagoano Octavio Costa, com o título ‘As flores de Vandré’. O militar afirma que o 3º FIC havia sido palco de três injustiças: a primeira por parte do júri, por não premiar a melhor letra; a segunda por parte da plateia, “pela cegueira da paixão, renegando dois dos maiores compositores brasileiros e sufocando a suavidade de Cinara e Cibele (sic); a terceira do próprio Vandré, cometida por “soldados armados”. Para ele, apenas a terceira ainda poderia ser reparada. Se para bom entendedor um pingo é letra, fica claro que do ponto de vista do general, o compositor deveria sofrer alguma punição (…) No dia 11, um boletim do SNI avisa ao DOPS de São Paulo que o DOPS carioca havia apreendido 500 discos com a canção de Vandré, ‘considerada subversiva pelas autoridades militares”. Quatro dias depois, um promotor militar denuncia um estudante por carregar um pacote com panfletos subversivos, em cujo verso estava impressa a letra de ‘Caminhando’.”
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