Por Rubens Nóbrega
“Ei, Rubão, ele quer porque quer falar contigo. Nilo já está por aqui, Simbaldo tá pra chegar e falei há pouco com Lúcio, que ficou de vir também. Se você puder vir logo…”. A piora de Moqueca e o desejo de moribundo chegaram-me por telefone, pela voz de Ruy Barroso. Ligou-me por volta das oito da noite, no momento em que me preparava para abrir debate em Cajazeiras sobre ‘Jornalismo e Poder na Paraíba’. Recebi a ligação faltando pouco para começar o evento, promovido pela Associação Cajazeirense de Imprensa (ACI), então presidida pelo Compadre Zé Benício. Após desligar o telefone, não tive dúvida. Precisava e voltaria de imediato para João Pessoa. Queria estar com o velho Moqueca antes que ele…
Pelo tom de Ruy, o homem não chegaria ao amanhecer. Precisava mesmo rever Moqueca, a quem não via há mais de 20 anos e, sinceramente, se topasse com ele na rua não reconheceria. Mas achei muita consideração da parte dele, no seu momento terminal, incluir-me entre os amigos que gostaria de ver antes de…
Moqueca arrebentara-se todo há dois dias, na descida do viaduto das Três Lagoas. Vinha de Mamanguape. Um caminhão triscou na traseira da moto. O suficiente para fazer o piloto voar por cerca de dez metros, até bater o corpo na guia do acostamento. O capacete livrou a cabeça, mas o resto…
Com o apelo de Ruy repicando no juízo (“… se puder vir logo…”), peguei a BR-230 por volta das 20h40 e botei até 150 km por hora no Del Rey 86 de Bené Alves, que me cedera generosamente o seu carro para aquela viagem, decidida de última hora.
Na carreira medonha de volta, duas horas e meia após sair de Cajazeiras já me via subindo a Serra de Santa Luzia. Naquele ritmo, chegaria por volta de uma da madrugada no São Vicente, onde Moqueca estava internado. Mas aí… “Êpa! Que molesta foi isso?”, gritei comigo mesmo, ao ouvir um pipoco e sentir a direção puxando pra beira do abismo bem na última curva da ladeira.
Bem que Bené me avisara (“os pneus tão meio carecas, mas andando com cuidado…”). Ainda bem que consegui parar o carro antes de cairmos os dois no precipício. Mas e daí? Estava ali no maior breu, imaginando como trocar pneu no escuro de um carro do qual você não sabe sequer onde ficam macaco e chave de roda.
Acabei encontrando as ferramentas, contudo, tateando por dentro da mala. No mesmo instante, achei também o medo. Medo, não. Pavor! E se aparece algum assaltante, cobra ou outro bicho qualquer para me atacar? Lembrei de meu avô, Pai Milão, contando histórias de onça pintada nas serras do Sabugi…
E, pior, minha aflição foi à lua no momento seguinte quando ouvi som de motocicleta se aproximando, diminuindo a velocidade, finalmente parando adiante, no acostamento, na frente do carro. “Pronto! Já era”, pensei, passando a segurar a chave de roda com força numa mão, enquanto a outra tentava se armar com o macaco.
“Precisa de ajuda aí, camarada?”, falou de lá o motoqueiro, certamente um rapaz jovem, dono de voz calma e firme que me devolveu subitamente a tranquilidade e a esperança de sair dali vivo, a salvo. Quando perguntou se precisava de ajuda, já vinha andando na minha direção sem capacete e segurando uma lanterna de pilha, que me passou tão logo se acocorou ao lado do pneu baixo. “Segure aqui e me passe a chave de roda e o macaco”, pediu. Atendi. “Pega lá o estepe”, ordenou. Obedeci.
Ergueu o carro com agilidade e mais ágil ainda começou a tirar os parafusos. No último, porém, a cabeça do bicho remoeu. “Eita, camarada, complicou”, diagnosticou o meu surpreendente borracheiro. “Você tem alguma coisa aí pra fazer um calço entre a chave e a cabeça da porca?”, perguntou. “Tenho não, amigo. Esse carro nem meu é”, informei. Ele pegou a lanterna, deu uma ligeira busca dentro do carro, deu um suspiro de desalento, ficou de cócoras de novo e botou o foco de luz no meu rosto.
“Dá pra gente usar a medalhinha que você traz pendurada aí no pescoço?”. Diante da pergunta com jeito de sugestão ou de última chance, segurei meio assustado o trancelim e o pingente de ouro de Nossa Senhora de Aparecida que me foram presenteados por minha mãe, Dona Aparecida, no último aniversário.
Desfiz a resistência e entreguei a medalha, afinal. Creck! A imagem virou um caco retorcido, mas cumpriu a missão. O parafuso rodou e o pneu foi trocado, enfim. E assim que colocou o pneu furado na mala, o rapaz despediu-se rapidamente, subiu na moto e foi embora. Não deu tempo de lhe perguntar o nome nem dizer o meu. Tentei segui-lo, mas ele deve ter rodado a mil por hora, pois em segundos, como por encanto, desapareceu do meu campo de visão.
Daquele momento em diante, peguei direto até João Pessoa, tirando o máximo do Del Rey de Bené. Não parei mais em canto algum, nem mesmo em borracharia para consertar o pneu. Mas não deu tempo de pegar Moqueca ainda vivo. “Morreu por volta das onze da noite, Rubão”, estimou Ruy Barroso, acrescentando que o nosso amigo se mantivera consciente praticamente até o fim.
Passamos o resto da madrugada no hospital, recordando o nosso tempo de escola, o carisma e a popularidade de Moqueca e o que ele aprontava juntamente com Nilo Cabeção e o próprio Ruy no velho Marista de guerra, além do tanto de trabalho que todos nós dávamos ao Professor Damião, o diretor do colégio.
Ao amanhecer, fui até o Mercado da Torre para tomar café. Na sequência, botei o carro de Bené pra lavar e o pneu pra consertar na borracharia que fica vizinha onde hoje é a churrascaria de Basto. Fiquei aguardando o serviço terminar, cochilando num sofá encardido e fedorento sob a latada do lava-jato. Fui acordado bem uma hora mais tarde pelo rapaz com modos e ordens de gerente do estabelecimento.
Paguei, entrei no carro e já me preparava para ganhar a rua quando um dos lavadores aproximou-se. “Peraí, Doutor. Faltou lhe entregar essa medalhinha. Tava na mala do carro”, disse, colocando na minha mão espalmada a imagenzinha de Nossa Senhora. Intacta, perfeita e com um brilho que só vendo. Parecia ter sido polida e não destruída na noite anterior, na Serra de Santa Luzia.