Nicole, de 29 anos, nunca conversou com seus pais sobre sexualidade. Foi abusada pelo irmão dos 8 aos 12 anos, e diz que não sabia ao certo que aquilo era errado. A pedido dele, seis anos mais velho, e por medo, não contou a ninguém o que se passava.
“Só soube que era errado quando meu pai nos pegou. Caiu a ficha que eu estava fazendo algo de errado com ele”, lembra Nicole, que pediu à Universa para não ter seu nome revelado.
Aos 14 anos, perdeu a virgindade com o primeiro namorado, que depois a fez ter relações com um amigo dele. “Ele me chamou para ir em sua casa. Tivemos relação e depois ele falou que os colegas dele também fariam a mesma coisa. Deixei um deles fazer, mas percebi que não estava certo e fui embora”.
Dois anos depois, Nicole teve aulas sobre sexualidade na escola. Ali aprendeu sobre métodos contraceptivos e, como estava namorando, pediu a uma amiga indicação de anticoncepcional para ela não engravidar. Mas o medicamento, que não foi indicado por um médico, não evitou o nascimento de seu primeiro filho. Foi só no pré-natal que ela teve a primeira conversa aberta sobre sexo:
“Se a escola tivesse trabalhado mais o tema ou meus pais tivessem falado abertamente comigo, talvez meu irmão não tivesse feito o que fez. Acho que nem ele sabia, na época, que era errado. Não o culpo. Talvez eu nem tivesse engravidado depois. Hoje converso com meus filhos, de 12, 9 e 4 anos, sem tabus. Oriento a mais velha a nunca sentar no colo de parentes, ou homem nenhum”.
Uma grande corrente de pais acredita que a discussão sobre gênero e sexualidade não deveria ultrapassar as paredes de casa. Mas a desinformação pode fazer com que histórias como a de Nicole se repitam. A Universa convidou profissionais da educação para apontarem a importância de se levar debates sobre gênero e sexualidade para a sala de aula.
Gênero x Sexualidade
Discutir o gênero é muito mais do que falar se alguém é homem ou mulher. Tem a ver com a construção da sociedade e as expectativas sobre ela, de acordo com sua cultura, desde as vestimentas até a posição de cada um. A professora da Faculdade de Educação da UFRGS (Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul) Jane Felipe de Souza exemplifica: na nossa cultura, a feminidade se dá a partir do incentivo ao embelezamento, aos cuidados com a vida doméstica e à maternidade. Já a construção dos homens se pauta numa educação beligerante, mais agressiva, a partir do momento em que são estimulados a brincar de luta desde cedo, por exemplo.
Já a identidade sexual tem a ver com as pessoas por quem nos sentimos atraídos. Esses objetos de atração podem ser pessoas do mesmo ou do outro sexo, ou de ambos, no caso dos bissexuais. Há ainda assexuais — aqueles que não sentem desejo por ninguém. “Quando a gente usa a expressão ideologia de gênero parece que estamos depreciando o assunto. Não se deve reduzir sexualidade e gênero a sexo”, resume a professora, especialista em gênero, sexualidade e educação sexual.
Erotizar crianças
Escolas e professores estão sendo acusados de erotização das crianças, por estimularem o debate acerca da sexualidade cada vez mais cedo. Em defesa dos profissionais, Jane lembra do livre acesso a filmes e novelas em horário muitas vezes comercial, e com cenas praticamente de sexo explícito. Isso, de acordo com a especialista, desperta uma curiosidade natural, e o papel do professor vem para organizar esses pensamentos e trabalhar temas sensíveis como morte e violência. “A escola precisa dar conta dessas temáticas que surgem”.
Respeito e empatia
Na opinião de Jane, se o Brasil tem um alto índice de feminicídio — assassinatos de mulheres cometidos em razão do gênero — e se somos o país que mais mata a população LGBT, isso significa que os agressores também tiveram uma péssima educação em casa, ao ponto de não respeitarem o próximo. “Isso mostra que, para educar a criança é preciso ter competência técnica e afetiva e fazer com que ele respeite e tenha empatia. É isso que é proposto nas escolas”.
Combate à discriminação contra a mulher
Marília Pinto de Carvalho, professora da Faculdade de Educação da USP (Universidade de São Paulo), explica que o debate sobre gênero ajuda no combate à discriminação das mulheres. Isso porque se discute sobre sua representatividade na política, a diferença entre os salários, entre outros. Dentro dessas conversas, mostra-se ainda que os meninos podem gostar de artes, de dança, e as meninas podem ser cientistas ou seguir qualquer outra profissão dita masculina. “É preciso incentivar a tolerância e o respeito. A construção democrática tem a ver com discussão de gênero”, resume ela, que é co-coordenadora do Grupo de Estudos de Gênero, Educação e Cultura Sexual (EdGES).
Identifica quando há violência sexual
Marília lembra que muitas questões acerca da sexualidade são colocadas pelas próprias crianças, e é nesse momento que o professor ajuda a turma a identificar uma possível violência sexual. “São vários os relatos de crianças pequenas que sofrem abuso sexual em casa e não sabem. Os professores podem explicar o que pode e o que não pode, onde não se deve colocar a mão. Neste momento, o aluno vai contar o que está acontecendo e a escola vai agir para proteger essa criança. Assim se previne gravidez precoce, abuso, violência. Educação sexual não é discutir como se faz, mas colocar valores”, resume ela.
Combate a doenças
A professora Helena Altmann, do departamento de Educação Motora da Faculdade de Educação Física da Unicamp (Universidade de Campinas) lembra do aumento no número de casos de sífilis. Ela, que coordena o Grupo de Pesquisa Corpo e Educação, atenta que quando a escola entra com campanhas, fala de DSTs (doenças sexualmente transmissíveis), ajuda na prevenção. “Sem contar que o trabalho da prevenção é melhor do que tratamento”.
Para todas as idades
Helena explica que não há uma idade para se falar sobre sexualidade e gênero. O que determina a hora de falar sobre o assunto são as perguntas e elas chegarão. A questão aqui, explica ela, é como trabalhar o tema com cada uma das idades. “Não existe discurso ideológico, mas a abertura de um canal de conversa”. Isso, a partir da demanda da criança. O que não pode é ignorar o assunto a partir do momento em que eles demonstram curiosidade.
Estratégia pedagógica
Restringir o debate sobre gênero e sexualidade à família é transformar isso em tabu, e em muitas casas não existe abertura para se conversar sobre sexualidade. O próprio filho, atenta Helena, não quer discutir com os pais porque existe ali um constrangimento. Entra, aí, o papel da escola: por ser um ambiente em que o jovem está com seus pares, e com pessoas formadas, há uma abertura ao diálogo. E quando a escola se mostra aberta, passa ainda a amparar o aluno sob outros aspectos, e constrói a partir disso uma estratégia pedagógica para evitar, por exemplo, o fracasso escolar. “Não é doutrinação, mas permitir que as pessoas possam se expressar”, pondera a professora.
Fonte: UOL
Créditos: UOL