Rubens Nóbrega

Encontrei-o no cafezinho no começo da semana que passou, acho que na segunda, finalzinho da tarde, tomando um pingado grande e lendo o jornal do dia na mesa do canto. Estava um tanto diferente, muito pálido, cabecinha branca. Mas o que me chamou a atenção, de cara, foi o fato de ter permanecido indiferente ao meu olhar quando o coloquei na mira de reconhecimento. Sua atitude deixou-me em dúvida por segundos. Seria mesmo Joãozinho?

Afinal, a última vez em que nos encontramos completara 20 anos ou mais. E a notícia mais recente que tive dele foi de morte. Ainda bem que não. O homem estava ali ao meu lado, vivinho da Silva. Não perderia a oportunidade de cumprimentá-lo nem de não passar outra vez por metido a besta, do tipo que finge não reconhecer os velhos amigos. Decidido, botei a hesitação de lado e fui direto.

– E aí, camarada, tudo em cima? Por onde tens andado? Que andas fazendo da vida? – perguntei, enquanto apertava-lhe a mão com força calculada para demonstrar o entusiasmo que precisava transmitir naquele reencontro.

– Rapaz, sabe como é… Trabalhando muito pra sobreviver e manter a família em paz, com saúde. E você, tá bem? Família em ordem? Quantos filhos já? – devolveu ele, todo simpático, dando abertura para botar o papo em dia.

Daí em diante, o diálogo fluiu bem até certo ponto, como veremos a seguir.

***
– A família vai bem, obrigado. Quanto a filhos, parei nos três. Mas já tenho um neto, que me deu o meu mais velho. E tenho também duas meninas. A mais nova, ainda adolescente, sequer namora. A do meio quase casa um tempo desses. Ficou noiva e tudo o mais. Mas não deu certo. Hoje, vive dedicada à igreja dela.

– Virou freira ou pastora?

– Não, não, nada disso. Digo igreja dela porque trabalha lá dois expedientes puxados e, à noite, se tem culto, vai pro culto; se não tem, há sempre uma tarefa extra, uma missão, coisa do gênero… Ou seja, é funcionária missionária.

– Tenho uma sobrinha que também era assim, mas casou com um sujeito meio bronco, além de muito ciumento, e o infeliz não deixa a mulher frequentar a igreja como ela gostaria. Sei não, mas acho que o casamento deles vai longe não.

– Acho que estou lembrado dessa tua sobrinha. Não é a Verônica?

– Não, é a Estela.

– Estela? Estela?… Lembro dess’aí não. Bem, deixa pra lá. Mas diga você agora: como vai a família? A patroa vai bem? E os filhos?

– Mais ou menos, amigo, mais ou menos. O meu mais novo é que está dando um trabalho, rapaz, que nem te conto.

– Tá, é?…

– Pois é, rapaz, não quer estudar, já reprovou duas vezes e vive ameaçando não fazer vestibular. O negócio dele é ser vendedor. Diz que vai ser corretor de imóveis e ganhar muito dinheiro sem precisar entrar em faculdade nenhuma. Acredita?

– É fogo, meu velho. Mas pode ser que dê certo, não é? Vamos torcer.

– Pode ser, pode ser. Mas a concorrência é feroz. Tem que ralar muito pra se afirmar nesse mercado. Tenho sérias dúvidas se ele consegue. Mas eu e a mãe já conversamos e vou pagar um curso pra ele.

– É isso aí, é o mais sensato a fazer, pode ter certeza, amigo. A gente tem que dar uma força, pelo menos até determinada fase da vida dos filhos. A partir daí, João…
– João? Que João? Tá misturando, companheiro. Eu sou Fernando. Tu deve estar é me confundindo com outra pessoa.

– Tô brincando contigo, Fernando. Achei que tu ainda ficavas puto do mesmo jeito de antes, quando te confundiam com Joãozinho?

– Como assim? Conheço nenhum Joãozinho não, rapaz. E nunca ninguém tirou onda comigo de me chamar de Joãozinho. Nunca, Zé.

– Zé? Que Zé? Ah, quer dizer que tu tá pensando que tá falando com Zé, é? Tu é que estás bolando as trocas, camarada. Pelo visto, a confusão é tua.
– Oxe, quer dizer que tu não é Zé de Aprígio, não?

– Quem? Que papo é esse, compadre? Sou Rubinho de Vicente e Aparecida! Vai dizer que não tá mesmo me reconhecendo? Não? Ora, veja só, e eu pensando…
– Ah, me desculpe, amigo. Pois, esse tempo todinho, jurava como estava conversando com Zé de Aprígio, lá de Boqueirão.

– Vige! Passou longe. Eu vim lá de Bananeiras, João. Quer dizer, Fernando.

– Mais essa. Fizesse de conta que tinha me reconhecido como Fernando, não foi?

– É, confesso que sim, amigo. Peço desculpas. Sou péssimo fisionomista, mas, quando vi você aqui, fiquei certo de ter reencontrado Joãozinho, amigo de infância lá da Terrinha.

– Também peço desculpas por ter te confundido com Zé, conterrâneo que faz uns vinte anos que não vejo. Bem, vou andando. Café já tá pago. Desculpe mais uma vez se confundi você, Zé. Quer dizer, Rubinho.

***
Depois que ele saiu, aproveitei pra pedir um expresso a Dona Karol e dar uma olhada no jornal que o bacana deixou largado sobre a mesa.

Na quinta página, um anúncio fúnebre chamou-me a atenção. Missa de um ano da morte de João Horácio dos Anjos. Quase enfartei ao mirar a fotografia do finado, tirada quando ele era bem jovem. Joãozinho, com toda a certeza.