Os heróis do Censo

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Nonato Guedes

No livro “Deu no New York Times”, que contém matérias enviadas como correspondente, no Brasil, do jornal mais influente do mundo, o jornalista Larry Rohter inclui uma reportagem sobre o árduo trabalho dos recenseadores recrutados pelo IBGE para contar o número de habitantes deste país e revelar outras informações sobre o perfil da sociedade brasileira. Ele escolheu como foco da matéria a selva amazônica, onde o trabalho do recenseador é infinitamente mais complicado do que em outras regiões. As oscilações de temperatura na selva costumam tornar inacessível o contato com algumas comunidades ribeirinhas. Rohter diz que apesar do nome insosso do IBGE, seus funcionários no Amazonas não eram burocratas de escritório e, sim, uma versão moderna dos “bandeirantes”, descendentes de pioneiros do século XVI que desbravaram o interior amplo e inexplorado deste solo.

São citados casos de recenseadores que passam até três semanas consecutivas na selva, indo de casa em casa, de barco por entre a rede de rios, córregos e lagoas que, de forma precária, unem o Amazonas. O barco também serve de casa durante as excursões a áreas remotas, e no final do dia o recenseador e o piloto estendem suas redes para dormir e cozinham suas refeições simples em um fogão a gás, narrou o jornalista. Num depoimento sobre o trabalho, o recenseador Danglers da Costa Castro afirma que às vezes as pessoas da região são gentis e oferecem peixe, frutas ou mandioca. Diz que a pior parte é ao anoitecer, quando nuvens de mosquitos tomam conta da área. Mesmo em terra firme, as condições frequentemente também são duras e adversas para esses heróis do Censo, realizado a cada dez anos.

“Pode-se demorar duas horas para caminhar de uma casa a outra, necessitando da ajuda de um guia local para não se perder. Ao longo do caminho os recenseadores precisam estar atentos ao perigo de cobras venenosas, escorpiões e formigas que picam, porcos selvagens e, às vezes, até mesmo onças, sem falar nas plantas com folhas cortantes como navalhas ou secreções que causam coceiras incontroláveis. Tudo isso por um salário de cerca de duzentos dólares ao mês, ou o dobro do salário mínimo. Tem pessoas que desistem. Elas querem trabalhar mas simplesmente não estão preparadas para uma tarefa tão árdua como esta”, mencionou o jornalista. Originalmente, a matéria foi publicada em outubro de 2000 mas de lá para cá a realidade do trabalho dos recenseadores não mudou radicalmente.

Vencer a resistência dos moradores nem sempre é fácil. O governo brasileiro já gastou milhões de dólares em propagandas de rádio e televisão, mas os recenseadores ainda encontram pessoas em muitas áreas remotas que não sabem o que é o Censo, e algumas ficam indignadas com sua presença. Fernando de Souza Lima, um funcionário veterano do Censo, definiu: “Quando as pessoas não têm nenhuma ideia do porquê de tantas perguntas e querem uma explicação, é melhor você não dizer que representa o governo federal, porque isto só cria uma barreira. Nesses casos, você se sai melhor se disser que está fazendo a contagem para que o prefeito ou o governador saibam quantas novas escolas ou clínicas precisam ser construídas”. Mesmo assim, em alguns lugares, recenseadores são recebidos com baldes de água e maridos machões que se recusam a deixar suas esposas falar com estranhos. Os problemas são diferentes mais ao sul, em cidades grandes como Rio e São Paulo: em edifícios de bairros de classe alta há porteiros que citam razões de segurança para impedir o acesso dos recenseadores, e nas favelas há quadrilhas de traficantes.

Rohter aludiu, também, às críticas a perguntas dirigidas aos brasileiros. Grupos defensores de direitos dos homossexuais reclamaram, por exemplo, que embora o formulário do Censo inclua questões sobre religião e mesmo sobre a posse de eletrodomésticos, não há uma questão sequer indagando sobre a orientação sexual. “A questão da raça, porém, é claramente a mais polêmica e complicada neste país que se orgulha de ter uma população que inclui todas as cores do arco-íris”, anotou Rohter no seu diário de matérias para o “New York Times”. Nessa matéria, ele reproduziu com fidelidade o perfil do recenseador, esta espécie de herói da selva brasileira, que merece todas as reverências pelo trabalho árduo e importante que realiza.