O sumiço de João

Rubens Nóbrega

João Luiz não era propriamente filho de pobres. Seus pais moravam numa granjinha de oito hectares a menos de três quilômetros da cidade. E o velho, Seu Tirço, tirava bom dinheirinho vendendo ave viva ou abatida e ovos na feira. Pra vocês terem uma ideia, o negócio ia tão bem que o homem resolveu expandir, diversificar. Construiu abatedouro para os bodes que decidira comprar para criar, engordar, abater e vender.

Mas bem distante da casa. “De sujeira já basta a de merda de galinha no quintal”, disse Dona Guia ao marido, quando ele tentou convencê-la de que o melhor seria criar os bodes ao lado do aviário. De qualquer modo, apenas com o que tinha originalmente, a granja já rendia o suficiente para o velho manter a propriedade, a mulher e o filho único fazendo Medicina. De mais a mais, o estudo do menino não era tão caro assim. João era aluno de universidade pública e morava numa república.

Ele e mais sete, com os quais dividia o aluguel da casa. Aqui, acolá, dividia também noitadas. E mulheres que por lá apareciam, segundo vizinhas fofoqueiras incomodadas com a algazarra que as moças e os rapazes faziam nessas ocasiões. Apesar disso, o nosso João, vamos ser justos, não era dado tanto assim à esbórnia. Levava muito a sério o curso e varava madrugadas queimando pestana nos livros.

Além do mais, o filho de Tirço e Guia envolvera-se na política estudantil. Fora eleito vice-presidente do diretório acadêmico do qual seria o próximo presidente, segundo acordo firmado na última eleição. João Luiz não tinha, portanto, tempo nem disposição sobrando para farrear dentro da sua república ou fora dela. Vez em quando, quando dava… Tudo bem. Mas era raro ver o jovem na gandaia.

De modo que o futuro médico, aplicado e focado, sobressaia-se no curso e no movimento estudantil, mesmo sabendo que seus pais reprovavam aquela militância, principalmente o velho, entusiasta do regime de força que derrubara o governo civil há pouco. Até aquele momento, contudo, quem mandava no país prometia restaurar o quanto antes a democracia e parecia tolerar alguma liberdade de expressão dos opositores e de opinião da imprensa. Mas aí veio o pior. Sob o pretexto de que queriam tirá-lo do poder na marra e na bala, o general-presidente da hora baixou ato institucional, mandou cassar meio mundo e prender outro bocado.

Seu Tirço soube do endurecimento à noite, pelo rádio. Aplaudiu as medidas anunciadas. E – vejam só como são as coisas – no dia seguinte, pela manhã, o velho foi surpreendido com a visita de dois homens conduzidos num jipe que só tinha placa na frente. Um deles se apresentou como major do Exército. À paisana, teve que mostrar sua identidade ao dono do lugar. O outro, alto e corpulento, agalegado, todo suado, disse que era delegado de polícia. Não mostrou documento algum. Tirço também não pediu. Cabra daquele tamanho, daquele jeito, “só pode ser”, avaliou.

“Bem, mas em que posso ser útil?”, ofereceu-se o velho. “A gente tá precisando de um lugar pra guardar algumas armas e materiais apreendidos dos subversivos que estamos prendendo. E, rodando aqui pela região, a gente viu que o senhor tem um quartinho lá no final do sítio. Daí, se o senhor puder colaborar…”, explicou o major. “Mas é claro, comandante. Enquanto eu não tiver meus bodinhos em ponto de abate, pode dispor”, cedeu o proprietário.

Quando os homens foram embora, Seu Tirço achou por bem não contar à mulher do favor que estava fazendo à ‘revolução’. Mas daria ciência ao filho quando ele viesse no domingo. Só que João não apareceu nem deu notícia, deixando os pais bastante apreensivos, pois o menino não era disso. De qualquer modo, acharam por bem não ir logo até a cidade para saber o que teria acontecido. “Melhor aguardar até amanhã. Tu vai lá na república, leva alguma coisa pra ele e conversa”, sugeriu Dona Guia.

Ao amanhecer, lá se foi Seu Tirço levando bolo de milho que Dona Guia fizera pro filho tomar com café. Mas o velho encontrou a república fechada. Bateu, bateu, ninguém respondeu. Socorreu-lhe uma vizinha que abriu a janela da casa ao lado, escanchou metade do corpo no peitoril e informou: “A Polícia teve aqui sábado à noite. Levou todo mundo preso. A farra devia tá grande”.

Seu Tirço não contou mais conversa. Correu pra delegacia, mas lá não encontrou o delegado que estivera na granja na terça passada, muito menos informação sobre o paradeiro do filho ou a razão de a Polícia ter feito operação na república onde João Luiz morava. “O senhor já tentou lá no quartel?”, perguntou-lhe meio sugerindo o policial que o atendeu. Nem precisava dizer, mas também no quartel do Exército o velho soube nada de coisa alguma. Lá sequer sabiam da existência do suposto major que estivera na casa daquele homem que transmitia aflição em cada gesto ou palavra.

Seu Tirço retornou ao sítio em desespero. Mais desesperada ainda ficou Dona Guia ao tomar conhecimento do sumiço do filho amado em circunstâncias tão misteriosas. Quando a noite caiu, restou ao casal orar e pedir a Deus pela volta de João. Após a reza, a mulher tomou comprimido forte pra dormir e caiu no sono pesado. Nem ouviu quando bateram palma lá fora e o marido foi atender.

Seu Tirço saiu e deu de cara com o grandão, o ‘delegado’, ofegante. “O major tá precisando do senhor lá trás, no galpão. Venha comigo”, disse o homem, já puxando o velho pelo braço. Que foi, literalmente arrastado pelo brutamontes, e quase caiu pra trás quando chegou lá e viu um homem encapuzado, todo ensanguentado, pendurado num pau-de-arara. Parecia estar morto. Estava. O major só queria saber de lugar seguro para enterrar o corpo do ‘terrorista’ que não resistira às porradas do delegado.

Tremendo que só vara verde e implorando interiormente para que aquela pobre criatura trucidada pela tortura não fosse o seu filho, Tirço indicou uma ribanceira na beira da estrada de acesso à granja, quase chegando na pista da BR. Depois que os assassinos saíssem, quando amanhecesse, arquitetou, iria até o local para desenterrar e conferir. Foi seu último pensamento.

O delegado só precisou dar uma única paulada na nuca do velho… E Dona Guia, coitada, enlouqueceu e não viveu mais do que dois anos depois daquele dia. Morreu no manicômio onde passava o dia chamando pelo marido e pelo filho que nunca mais viu.