Polêmicas

O sobrinho do Doutor

Por Rubens Nóbrega

Nunca teve moleza na vida, sequer na infância. Menos ainda na adolescência, tempo que dividiu entre a escola pela manhã, a mercearia do pai à tarde e o estudo à noite. Criado sob privações de asceta e educado na mais rígida disciplina, Basto levou para a vida adulta o jeito severo de ser, sem desvios de conduta ou fraquejos de caráter. Nem mesmo na juventude que passou na Capital permitiu-se às pândegas e farras próprias da idade.

Ele veio de Misericórdia, onde nasceu, para João Pessoa, onde vive até hoje. Porque botou na cabeça de ser médico e somente aqui acumularia conhecimento suficiente para entrar no curso mais concorrido da Federal. Os pais apoiaram de logo a pretensão e a mudança, orgulhosos da decisão do filho de se formar em Medicina. Nem assim aliviaram nas obrigações. Basto estudaria na Capital, tudo bem, mas teria que prover o próprio sustento. Trabalhando, lógico.

Acostumado à dureza, o menino tirou de letra. Melhor: primeiro, passou com excelentes notas no exame de admissão do Liceu, onde faria o segundo grau; ao mesmo tempo, batalhou e conseguiu vaga na Casa do Estudante, para ter onde dormir sem mais dever favor a um tio que o acolheria em casa no primeiro semestre letivo. Fechando o roteiro traçado desde a partida, o jovem Basto procurou a achou trabalho para se manter.

Arrumou emprego de revisor num jornal onde a redação encerrava tarde da noite, obrigando a revisão de textos a entrar pela madrugada. Nessa pisada, não conta vezes em que saiu da lida direto para o colégio. Dificuldade desse porte era café pequeno para o rapaz, todavia. Prova disso, três anos após a estreia em João Pessoa, lá estava o seu nome entre os dez primeiros no mais disputado vestibular da Paraíba.

Pelo riscado até esse ponto, o leitor já deve ter presumido que o nosso herói concluiu Medicina com distinção e louvor. Foi, foi sim. Depois, fez residência em São Paulo, retornou à Paraíba e foi ser médico da Fundação Sesp. Trabalhou por três anos de clínico geral na maternidade que a instituição mantinha numa cidade-polo do Curimataú. De lá, rodou por mais três ou quatro em outros municípios do interior para, finalmente, definitivamente, reinstalar-se em João Pessoa.

Voltou porque passou em concurso para professor do curso que fez todo mundo chamá-lo de Doutor Sebastião. Bem sucedido e já ganhando um bom dinheirinho, casou, constituiu família e legou à sua descendência os mesmos valores e rigores que lhe formaram a personalidade com a têmpera dos melhores sertanejos. Por essas e outras, por todos os títulos e méritos, Basto transformou-se naturalmente em exemplo para todos os seus conterrâneos e motivo de particular orgulho para os mais chegados, aí incluídos os parentes mais próximos, além dos colaterais e ‘transversais’.

Para os seus familiares, em especial os mais distantes e de menos posses, o Doutor virou também referência de acolhida segura para alguns primos e sobrinhos que precisavam migrar para João Pessoa na expectativa de trilhar o mesmo caminho e alcançar o mesmo sucesso do anfitrião. No limite de suas possibilidades, inclusive financeiras, o homem deu guarida e ajudou muita gente que lhe procurou com aqueles propósitos. Mas não se envolvia diretamente na condução dos eventuais agregados.

Orientava ou fazia gestões para arranjar-lhes vagas em Casa do Estudante ou Residência Universitária; vez por outra, descolava empreguinho de jornada reduzida que não atrapalhasse a formação dos protegidos. Daí não passava. A exceção seria o filho único de sua única irmã. Com Perseu, eis o nome da fera, seria bem diferente, o que ficou patente desde quando Sebastiana pediu ao irmão para hospedar o sobrinho que pretendia concluir o científico em João Pessoa, cidade na qual o garoto jamais estivera. No dia da viagem, a mãe de Perseu ligou perguntando se Basto poderia pegar o jovem na Rodoviária.

– Posso, mas não vou – respondeu secamente o Doutor.

– Como assim, meu irmão? Que tem de mais…

– Tem, Bastiana, que não vou privar o menino de aprender o caminho…

Evidente que Perseu tinha o endereço do tio e resolveu se virar quando percebeu, após meia hora de espera no Terminal do Mangue, que não teria a carona dada como certa por sua mãe. E no mesmo dia, para sua decepção, soube que não ficaria morando na casa de Doutor Sebastião. Sua morada seria um pequeno apartamento no Castelo Branco que Basto comprara e mobiliara espartanamente, há pouco, já pensando nas serventias pelas quais era demandado.

Mas, atenção. O fato de Perseu não ficar sob o mesmo teto não significava, como não significou, que Basto largaria o sobrinho no Castelo, esquecendo-lhe a existência e os cuidados de um tio que desde a chegada do rapaz sentira um quê de indolência e malandragem no filho de Sebastiana. Intimamente, admitia e torcia por um equívoco de sua parte, mas… Daí por que deu para fazer coisas como a incerta que certo dia fez no apartamento, onde encontrou Perseu deitado numa rede, não dormindo, mas estudando.

Foi aí que o Doutor deu fé: não equipara direito o apartamentinho. Constada a falha, não contou conversa… Voou para a Rua da República e de lá voltou com uma escrivaninha usada, mas em bom estado. Ele mesmo instalou o móvel na sala, adicionou-lhe a única cadeira disponível e foi até o quarto onde Perseu continuava estudando do mesmo jeito, ou seja, na rede. “Faz favor de vir até a sala, meu filho”, chamou, sendo prontamente obedecido. “Olhe, comprei essa escrivaninha aqui pra você, porque rede é lugar de dormir, não de estudar. Faça bom proveito dela, viu?”, disse, indo embora em seguida.
***
– E que fim levou o seu sobrinho, Doutor Sebastião? Por onde anda Perseu? Conseguiu se formar? – perguntei-lhe semana passada, acho que na quarta-feira, depois de ouvir bom pedaço dessa história no cafezinho que frequentamos quase diariamente.

– Quem? Perseu? Ah, Perseu formou-se aqui na UFPB, fez pós-graduação em Campinas e foi pro exterior. Hoje ensina Medicina, numa universidade da Califórnia.