Gilvan Freire
Sem querer me afastar, neste momento, da discussão jurídica da questão envolvendo a permuta de terreno do Estado com outro de particulares, a fim de se construir outro shopping de Roberto Santiago em João Pessoa, operação nebulosa batizada com o nome jocoso de “porta da felicidade do filho único” – é importante pinçar algo mais em abono às opiniões contrárias a essa bandalheira toda.
O inteligente e próspero jornalista Luís Torres, diante dos primeiros indícios desse conluio que atenta contra o patrimônio público e joga poeira na cara de uma sociedade atônita com os desvios de conduta de seus líderes políticos e dos homens públicos privatizados, advertiu, semana passada, na parte mais dura de seu artigo:
“A palavra foi dada ao homem para que ela esconda suas verdadeiras intenções. Sempre repito tal máxima porque acho que ela é a que mais se encaixa no jogo político, tema recorrente em minhas colunas. Ora, é tão bonito ver o debate sobre a permuta de terrenos entre o governo do Estado e o dono do Shopping, Roberto Santiago, ser pautada pela discussão da moralidade ou da falta de legalidade na operação. Toda vez que o milionário Santiago está em jogo é assim: ninguém quer sair “liso” da discussão. Não todos, mas deputados, oposicionistas e governistas, empresários e quase toda sorte de gente que se envolve no debate querem sair menos pobre do que entraram. Os que ficam em silêncio, incluindo os oposicionistas, é porque já foram contemplados”. Por fim, depois de alinhar argumentos favoráveis, concluiu de forma dramática: “Pra fechar, uma dica: Santiago, paga logo que esse assunto se resolve. O que é eventualmente ilegal vai se transformar na operação mais lícita do mundo”.
Depois desse episódio do shopping fedido, o governo não será o mesmo do ponto de vista do conceito moral. Mas haverá a vantagem de todos nós paraibanos sermos mais e melhor informados. Também se saberá quantos são capazes de vender uma opinião, alienar um dever e alugar a própria alma. Haverá sempre um bom argumento para enganar o povo, e o melhor deles é dizer que a transação indecorosa é boa para a coletividade, ainda que o significado de coletividade, no caso, seja mais o coletivo (de poucos tubarões) e menos o conjunto da população (de muitos cidadãos).
A cada dia que passa a situação vai ficando mais degenerada, como uma infecção rodeada de pus que contamina todo o organismo e se espalha às adjacências pelo contágio dos que amam os riscos. Voltemos ao jurídico.
As ilegalidades viraram brinquedo dos imorais
Já disse anteriormente, que a lei das licitações admite a dispensa de concorrência quando se tratar de compra ou permuta de bens imóveis públicos, mas só quando a aquisição for indispensável ao interesse da administração e não houver outras disponibilidades de bens. Citamos vários exemplos, entre os quais a abertura de uma rua, a construção de rede de esgoto, uma linha férrea, um viaduto, que passem em cima de terrenos privados. Assim, a entidade pública pode adquirir os imóveis sem licitação, embora tenha de fazer rigorosa e insuspeita avaliação prévia. Essa não é, como sabemos, a situação do shopping e da Acadepol.
No entanto, quando for o caso de bens imóveis para abrigar repartições públicas – sede do governo, hospitais, creches, escolas, quarteis, delegacias – o terreno privado somente pode ser comprado ou permutado sem licitação se não existirem outros disponíveis no município ou na localidade, porque isso significaria uma preferência do gestor, e não uma escolha do interesse público, que há de obedecer à lei e à competição e não aos homens. Um modo muito comum e habitual de o poder público ocupar terrenos privados para neles edificar prédios de seu interesse é a desapropriação, mediante avaliação e indenização justas e honestas.
Se Ricardo Coutinho entende que no terreno do Geisel devem ser construídas algumas repartições públicas, como a Academia e Central de Polícia, o caminho mais limpo é a desapropriação da área. Afinal, aquela gleba já foi do Estado mas nenhum governador antes achou que ela era a mais adequada para localizar essas repartições. E a desapropriação teria a vantagem de o governo pagar pela área o mesmo preço que o Estado recebeu pela venda, recentemente, apenas corrigido e atualizado monetariamente – algo menos da metade do que o preço que lhe vai ser atribuído agora na permuta. Seria pequeno o desembolso do Tesouro.
RC alardeia que já tem 2 bilhões para gastar em obras. Mas se o Estado ainda precisasse de dinheiro para construir a Acadepol e a Central de Polícia (não há nenhum estudo técnico que deverão ser construídas naquele local), o que não precisa, aí sim, é só colocar à venda o terreno de Mangabeira, mediante leilão, e ver-se-á que ele será arrematado por valor muito superior ao que será dado na permuta. Iremos nos assustar com o que conheceremos daqui para a frente nesse sentido.
Opiniões de juristas consagrados
Celso Antônio Bandeira de Mello, um dos mais notáveis especialistas do Direito Administrativo do nosso país, diz, em resumo, sobre a alienação de bens públicos (venda ou permuta): “Dita alienação deve ser precedida da avaliação do bem e de licitação”, ressalvando as exceções que não estão presentes no nosso caso. Deve-se dizer logo que a avaliação há de ser antes e não durante ou depois de aberto o processo. Quando a avaliação é feita depois de proposta a compra, venda ou permuta, especialmente depois de denunciada a irregularidade com suspeita de improbidade, o processo já está viciado irremediavelmente, e não se conserta mais. A lei é curta e grossa e impõe a avaliação prévia. Sem isso, só se configura a prática da corrupção. Não fazê-la só faz prova de que não há lisura.
O professor Diógenes Gasparini, autor renomado, parecerista e publicista respeitado nos meios forenses, falando sobre a troca de bens públicos por bens privados, assevera: “Ademais, a troca só interessa quando for por um certo e determinado bem. Apesar disso, a licitação pode e deve ser feita quando o Estado não deseja um certo e determinado imóvel, mas um dentre os muitos que podem satisfazer seus interesses. Assim, a licitação é necessária, sob pena de nulidade, quando o Estado se propõe a permutar um terreno de sua propriedade, com área de 1.200m², com perímetro, divisas e confrontações tais e quais, situado no Bairro do Barro Preto, com frente para a Rua dos Pardais, por um terreno de área igual ou superior, situado nas proximidades da sede do Poder Público licitante. Como mais de um terreno pode atender a essas especificações, necessária é a licitação. Na escritura serão transcritos a lei autorizadora, os laudos de avaliação e as certidões negativas de tributos, ônus e alienações, além da explicitação do porquê da dispensa da licitação, quando for o caso”.
Vê-se, pois, que nessa transação maluca, afoita e irresponsável, seus mentores desrespeitam a lei e fazem pouco caso das ponderações. É uma persistência ensandecida que vai meter processo judicial no lombo de muita gente. E o resultado será desmoralizante para quem quer premiar a ganância em vez da prudência. Se é questão de medir força, talvez seja mais aconselhável medir a razão. Deputados e defensores dessa causa sem pudor poderão pagar mais tarde pela co-participação nessa trama criminosa que tem objetivos escabrosos e é de conhecimento de todos. Nem sequer poderão dizer depois que desconheciam as denúncias, porque elas estão escancaradas para quem tiver olhos e ouvidos.
Retomo o tema na terça-feira, com o entendimento do Poder Judiciário em casos semelhantes. Parece só não haver semelhante para os que querem esconder a sujeira debaixo da sola dos sapatos, muito embora, de regra, a corrupção seja como uma brasa que queima a pele dos que protegem as safadezas, cobrindo-as com os próprios pés.