O sertão virando mar

fotoNonato Guedes

Tenho procurado reproduzir, neste espaço, opiniões de interlocutores variados sobre os movimentos de protesto ocorridos no Brasil. O título acima é de um artigo do ex-guerrilheiro, ex-deputado e jornalista Fernando Gabeira, publicado em “O Estado de São Paulo”. Ele destaca que, com milhares de pessoas nas ruas, mais de 600 cidades em movimento e um protesto por hora, o Brasil foi sacudido pelo deslocamento de uma placa tectônica. Sob muitos aspectos, diz Gabeira, “não seremos mais os mesmos”. O também escritor de “Hóspede da Utopia” confessa que desejava ver manifestações de rua. Acompanhou algumas nos últimos dois anos, mas eram minúsculas e ignoradas. Sabia que o projeto do PT estava em declínio.

Para mim, o partido, como energia renovadora, morreu nos primeiros anos do século. Pensava, no entanto, que só em 2018 a Nação se daria conta disso. O vigor e a diversidade das manifestações, porém, superaram minhas previsões. Fixei-me no combate às fanfarronices do PT e não retomei os temas que desenvolvi em 2012. Um deles era a internet, uma revolução na minha atividade de jornalista. Por que não mudaria a política? Muitas pessoas que desprezam as petições online disseram que seus autores são ativistas de sofá, precisavam sair da frente do computador. Não perceberam que também os computadores trocaram o sofá pelas ruas. Em 2004, por mensagens nos celulares, milhares de espanhóis se mobilizaram e mudaram o rumo das eleições – ressalta Gabeira.

Conforme ele, todos nos tornamos capazes de relatar e enviar imagens, mas algumas empresas podem investir em obter e conferir os dados, deslocar-se para os grandes eventos. “A separação entre imprensa e redes sociais é relativa, porque uma metaboliza o conteúdo das outras. Reproduzido pela imprensa, tudo o que os políticos fizeram, e não foi pouco, acabou despertando a fúria de milhões de brasileiros, que se tornaram mais poderosos com a revolução tecnológica”. Gabeira ecoa um mantra que já está institucionalizado: “E agora?”. Avalia que a presidente Dilma foi tragada pela crise. As dificuldades econômicas tendem a se agravar e o mundo encantado do “nunca antes nesse país” foi para o espaço. Seus marqueteiros estão fazendo pesquisas qualitativas na camada de ozônio. Quanto a nós, teoriza, estamos navegando na neblina.

Mas alguns contornos, para o lúcido Gabeira, estão nítidos. Na luta contra a corrupção, afirma, não é necessário acrescentar um adjetivo na lei: crime hediondo. “Isso me faz lembrar os trens italianos, que não chegavam na hora, mas iam mudando o adjetivo: rápido, muito rápido, rapidíssimo. O melhor instrumento é a aplicação real da lei de acesso às informações oficiais. Por que não investir nisso? Custa menos que os milhões de cada grande escândalo na era do ‘nunca antes’. As grandes demandas sociais poderiam ser parcialmente satisfeitas se o governo cortasse seus gastos, reduzisse ministérios, cargos de confiança, gastos com viagens, até cachê do cabeleireiro”. Em 2012, Gabeira defendeu a ideia de um governo inteligente, não no sentido do QI dos seus ministros, mas da capacidade de usar os meios tecnológicos para baratear custos e, simultaneamente, conectar-se a grande número de pessoas.

Ele adverte que a internet não é uma panaceia, apenas um game changer: poderoso instrumento para utilizar racionalmente os recursos diante das crescentes demandas, não só de melhores serviços públicos mas também de ampliação da democracia. “Não é tarefa fácil. Os burocratas do PT respondem ao movimento das ruas com um plebiscito, na tentativa de dar ao processo o final empolgante de uma reunião de condomínio. O objetivo do PT é controlar tudo, como já controla o processo político. Num país onde muitos eleitores não se lembram do parlamentar em quem votaram, eles querem aprofundar a distância por meio de lista fechada. Na verdade, o governo não entendeu os novos tempos simplesmente porque sua estrutura mental não o permite. É uma estrutura fortemente hierarquizada. Participar das redes sociais, para eles, significa pagar a um batalhão de idiotas para repetir slogans e escrever blogs venenosos”.

Gabeira conclui que embora a construção do futuro seja o principal enigma no momento, é reconfortante constatar que as mentiras foram descobertas e, de súbito, uma nova realidade emergiu no país. “Os quase dez anos de exílio ao menos me ensinaram, como descendente de tuaregues, a atravessar o deserto com um copo de água. O oásis que projetei para 2018 acabou se aproximando. Miragem?”. O próprio Gabeira sabe que não, quando salienta que é possível derrotar os arautos das novas imoralidades com energia, paciência e…até um certo humor. Claro que sim!