Rubens Nóbrega

Calculo que Chico migrou de Campina para João Pessoa no começo dos 70. Não sei se veio de lá casado, mas é certo: se já constituíra uma família, aqui ela aumentou de tamanho e por aqui mesmo ele educou os filhos para fazer deles cidadãos tão bons quanto os pais.
Desconfio que Chico reside desde a chegada à Capital no bairro de Manaíra, onde sua história com a vizinhança é exemplarmente ilustrativa de como a escalada da violência nos últimos 30 anos impôs aos moradores da cidade mudanças radicais de hábitos e atitudes.
No caso de Chico, essas mudanças podem ser medidas pelo crescimento do muro de casa, em especial a parte que protege jardim e terraço. Tanto que ele lembra bem: no começo protegia a frente apenas com um portãozinho só no ferrolho e mureta de 80 centímetros.
Dez anos depois, a rua mostrou a Chico a hora de botar cadeado no portão e subir o muro para metro e meio, mais ou menos. Acrescentou um gradil de ferros pontiagudos que prometiam estrago dos grandes na mão de quem ousasse neles se apoiar para entrar na casa sem convite.
Meados dos 90, ganham ritmo e frequência alarmantes as ocorrências delituosas no bairro e por toda a cidade, principalmente assaltos à mão armada, arrombamento de carros e casas. Com isso, o muro de Chico agrega mais um metro e uma coroa de cacos de vidro.


Cerca elétrica e cachorros

2005. Em momentos distintos e aflitivos, dois filhos de Chico são atacados por ladrões em locais próximos de casa. A partir daí, tiveram que diminuir as saídas à rua e aumentar as horas dentro de casa, agora com muro reforçado por uma cerca elétrica.
Mais cinco anos e… Vendo a violência aumentar na mesma proporção da falta de proteção policial no interior dos bairros, vendo bandidos agindo cada vez mais à vontade e o governo priorizando cada vez mais o policiamento de exibição nas vias mais movimentadas…
Chico resolveu, então, adquirir uma parelha de cães de guarda. E de uma raça que de doméstica só tem a cara. Apesar de ter medo infantil de cachorro, o homem se superou e radicalizou. Comprou logo dois rottweilers, capazes de estraçalhar um homem adulto em dez minutos.
Menos de três meses após a aquisição dos bichões, Chico soube que a casa da vizinha fora invadida por uma dupla de meliantes. Levaram dinheiro e as poucas jóias da mulher. Deixaram um trauma e a certeza de que as pessoas de bem estão por conta do cão, literalmente.
O drama da vizinha fez Chico redobrar os cuidados. Instalou câmeras em pontos estratégicos e bem escondidos do muro, inaugurando uma vigilância eletrônica que até então acreditava ser possível e necessária apenas em repartições públicas, bancos e casas lotéricas.
Segurança, só a da milícia
Não deu um mês, mal havia se acostumado à vida de Big Brother, eis que Chico vê na televisão a notícia do sequestro e morte de um colega de trabalho, apanhado pelos facínoras bem dizer na porta de casa. Não teve dúvidas: aderiu aos serviços da milícia do bairro.
Por milícia de bairro entenda-se aquele grupo de motoqueiros que vende proteção aos sem proteção alguma da força pública, que coincidentemente ou convenientemente some de áreas residenciais onde os milicianos atuam de forma organizada.
Um dos serviços desses ‘modernos’ guardas noturnos é guarnecer o cliente quando o cliente chega tarde da noite e precisa aguardar alguém abrir o portão ou o portão abrir por controle remoto e o dono da casa entrar a pé ou de carro para enfim se trancar no seu bunker.
Eu já paguei por esse tipo de ‘segurança’ quando morava no Pedro Gondim. Resisti o quanto pude, quando eles começaram a oferecer os préstimos na minha rua. Deixei de ‘colaborar’ duas ou três vezes. A ‘colaboração’ eles pediam uma vez por semana, geralmente no sábado.
Depois da terceira recusa minha, coincidência ou não começaram a desaparecer roupas estendidas no quintal, a aparecer sinais de tentativa de arrombamento em portas e janelas… Aí não teve jeito. Além disso, a mulher pediu e mostrou que os vizinhos já haviam cedido.
Paguei. Paguei e iniciei os preparativos para morar em apartamento, algo que até hoje me faz sentir saudade imensa do tempo em que vivia ao rés do chão. Só não volto hoje para uma casa porque certamente teria que transformá-la em uma fortaleza, qual Chico fez e por sua manutenção deve pagar tão caro quanto taxa de condomínio.
Falando nele, encontrei-o ontem no supermercado de Seu Dedé. Sabendo de minha preferência por casa, assim que me viu fez proposta: “Estou vendendo a minha ou trocando por um apartamento. Se quiser fazer negócio, é só dizer que a gente conversa”.
É um caso – ou uma casa – a se pensar.