O julgamento do zelador

Rubens Nóbrega

Apesar da brilhante defesa do advogado, o abnegado e aplicado defensor público Ruy Baracho, a Câmara Criminal cassou a decisão do Júri Popular que absolveu Seu Zizinho, zelador do prédio de apartamentos mais caro e mais alto da cidade.
Apartamentos, não! Pera lá… Mansões sobrepostas em 29 pisos, uma por andar, cada uma com 380 metros quadrados de puro Carrara em todos os cômodos, quatro garagens no subsolo e um quarto de despejo com serventia de depósito tão seguro quanto os cofres do Gringotts Bank.
Mas foi justamente de um desses depósitos de onde furtaram dois quadros e uma escultura, valiosíssimos, recém adquiridos pelo feliz proprietário da paradisíaca cobertura, um desembargador dos mais temidos da Corte que decidira mandar Seu Zizinho a novo júri.
Tanto quanto a origem do dinheiro para a compra das obras de arte, a avaliação das peças foi omitida do grande público, mas no próprio edifício onde ocorreu o pretenso furto as Candinhas de plantão orçaram o lote em R$ 2 milhões e meio.
A fortuna teria sido desembolsada por Sua Excelência no mais recente leilão da Christie’s, ao qual compareceu depois de três dias em Londres, aonde levara sua madame exclusivamente para recompor o estoque de Notorious. Na Harrods, claro.
Batidos os martelos e empacotados os perfume da mulher, de volta ao Brasil o desembargador guardou no depósito da garagem as duas telas de Modigliani e a ninfeta de Brancusi que arrematara em Nova York.
Aquelas preciosidades do gênio humano aguardariam no depósito tão somente o fim da redecoração do ambiente que lhes acolheria em definitivo. Encarregado do serviço, o arquiteto da família prometera celeridade, mas trabalhava com diligência semelhante à de seu cliente nos despachos e relatorias que lhe competiam no TJ.


Polícia mostra competência

Ligeira mesmo foi a Polícia. Assim que o desembargador ligou para o secretário de Segurança dando ciência de que fora subtraído, uma tropa de elite apareceu no prédio e levou todos os funcionários do condomínio para interrogatório não se sabe onde.
Só sei que pelo menos dois porteiros e uma faxineira devem ter apanhado tanto que acabaram entregando o zelador, o único que ficou detido. Dizem que moeram Seu Zizinho no pau e o homem confessou o que não queria, não devia e muito menos sabia.
Passou pelo menos dez dias em cana. Somente foi solto porque dois outros moradores ilustres do prédio, também chamados de ‘operadores do Direito’, notaram a ausência prolongada do zelador, estranharam, perguntaram e descobriram, enfim, que o homem estava preso. Recorreram então à Defensoria Pública, que designou o Doutor Ruy para o caso.
No relatório conclusivo do inquérito, o delegado pediu o indiciamento de Seu Zizinho, acusando-o de ter facilitado o arrombamento do depósito do mais augusto morador do residencial mais exclusivo do lugar. O promotor de Justiça concordou e denunciou o zelador, a quem o juiz pronunciou e mandou a júri.

Prova mesmo não tem, mas…

No julgamento, Doutor Ruy provou por A + B a inexistência de provas contra o seu constituinte, mostrou que as confissões foram obtidas sob tortura etc. e tal. Os jurados, por maioria, acataram a tese da defesa.
Mas, aí, inconformado, o representante do Ministério Público recorreu da sentença e na Câmara Criminal do TJ deu o que os senhores e senhoras já sabem. Danado foi nem isso. Pior foi o advogado explicar de modo a fazer Seu Zizinho entender a razão de um novo julgamento.
– Olha, Seu Zizinho, o problema todo é porque entre os desembargadores prevaleceu a tese do domínio funcional do fato, ou seja, não precisa ser provado que o senhor cometeu algum crime, mas apenas que o senhor, como zelador do prédio, não poderia deixar de ter conhecimento do crime praticado. Entendeu?
– Me desculpe, Doutor, mas não entendi não. Principalmente porque contra mim só tem a palavra daquele porteiro que nem gosta de mim e tem um chamego com aquela outra lá que junto com ele me entregou pros homens…
– Vou dizer de outra forma, Seu Zizinho, que é pra ver se o senhor entende. Seguinte: essa tal teoria de domínio funcional do fato foi um troço que inventaram lá em Brasília pra condenar uns caras do PT. Entendeu agora?
– Ah, Doutor, agora sim… Agora sei do que o senhor tá falando. É feito tão fazendo naquele julgamento lá, né?
– Isso!
Para garantir a condenação

Temendo nova absolvição do zelador, o desembargador falou com uns amigos da imprensa e o ‘crime do zelador’ virou manchete. No rádio, na tevê, na internet e em alguns jornais cresceu a fama de Seu Zizinho como chefe de quadrilha. Especializada em lavagem de dinheiro em obras de arte, dizem.
O novo julgamento está pra ser marcado por esses dias. Conversei ontem com o Doutor Ruy sobre o caso de Seu Zizinho. Senti o defensor meio desanimado. “Por conta dessa campanha, o júri não vai ter coragem de contrariar a sentença da mídia”, disse.