'Canalhas!'

O extermínio da viuvez - Por Rubens Nóbrega

Meus proventos não dão pra mais nada. Darão menos ainda se, quando me for, a pensão que eu deixar pra Dos Anjos virar metade da minha aposentadoria, como supostamente quer o governo com essa reforma da Previdência.

Caro jornalista,

Receba meus cumprimentos e uma breve apresentação. Sou João de Deus, 86 anos, brasileiro, servidor público aposentado, casado há 62 anos com a minha amada Maria dos Anjos, que vai completar 84 antes do Carnaval.

Fizemos, criamos, educamos e formamos cinco filhos, três homens e duas mulheres, todos bem casados e vivendo bem com suas próprias famílias, apesar das dificuldades comuns a todos os brasileiros que não são ricos, privilegiados, corruptos impunes, alguma dessas coisas ou outras parecidas.

Uma jornada de muito sacrifício, de muita renúncia e muito trabalho me fez chegar até aqui. Somente possível porque lutei, estudei e me qualifiquei durante 38 anos de repartição, dando o meu melhor, fazendo jus ao meu salário, pode ter certeza.

Tudo fiz ou tentei para ter uma aposentadoria que até há pouco dava – na ponta do lápis – para bancar casa, comida, roupa lavada, uma doméstica a quem pago direitinho, consultas médicas, remédios e um plano de saúde para mim e minha mulher.

Nossas despesas com saúde aumentaram exponencialmente de dois anos pra cá, contudo. O plano de saúde, reajustado muito acima da inflação sob as bênçãos de governo, cobra-me agora participações cada vez mais caras, literalmente impagáveis.

O custo extra agrava-me diabetes e hipertensão; em Dos Anjos, talvez afete sem ela perceber a artrite reumatoide e a osteoporose que ameaçam condená-la já já a uma cama permanente. E o que é pior pra ela, coitada: como sozinho não dou conta de ajudá-la, é bem possível que passe a depender de cuidadoras que não sei como vamos bancar.

Meus proventos não dão pra mais nada. Darão menos ainda se, quando me for, a pensão que eu deixar pra Dos Anjos virar metade da minha aposentadoria, como supostamente quer o governo com essa reforma da Previdência. É verdade mesmo “esse bilete”? Não será fake news, hem, dessas que eles soltam, depois tiram, recuam ou desmentem para desacreditar a imprensa que faz jornalismo?

Custa aceitar que seja verdade. Mas de uma coisa tenho certeza: se passar, será crueldade sem tamanho com a grande maioria dos brasileiros que trabalha ou trabalhou de verdade e honestamente por toda uma vida. Será uma perversidade inominável com minha Dos Anjos, com todos os idosos e idosas do nosso Brasil, especialmente os aposentados, as pensionistas e beneficiários de prestação continuada da previdência.

Diga-me cá uma coisa, meu rapaz: isso é um plano de extermínio de viúvas ou viúvos e idosos em geral, inválidos e doentes graves, onde campos de concentração do nazismo do passado serão substituídos no futuro por residências, asilos, hospícios ou hospitais onde os ‘inservíveis’ possam vegetar e fenecer? E pra quê? Pra não mexer no dinheiro que tiram da seguridade social para pagar juros de uma dívida que o país já pagou dezenas de vezes?

Ou será que essa reforma é induzimento ao suicídio em larga escala dos mais velhos, dos desvalidos em todos os sentidos, como disse o poeta, tal e qual acontece no Chile, onde um regime de capitalização para complementar aposentadoria instituído no passado enriqueceu ainda mais banqueiros em troca de miséria que hoje recebe quem prefere a morte à indigência?

Veja bem, meu caro, minha aposentadoria vai além de um direito meu. É patrimônio de família. Não resulta apenas da minha lida de funcionário público. Sem minha mulher cuidando dos meus filhos, de mim e de casa, como poderia ter progredido no emprego? Como poderia ter estudado para subir na carreira e ganhar um pouco mais para ter um mínimo de tranquilidade na velhice?

Como não levar em conta o quanto por mim e nossos filhos ela se sacrificou e o quanto se anulou como pessoa e profissional que não teve como ser, a não ser dona de casa?

E meus 38 anos de contribuição líquida e certa a um regime com o qual não deixei de contribuir mesmo depois de aposentado? Quer dizer que toda a grana que me recolheram na fonte por todos esses anos será impiedosamente garfada, tungada, ao fim da minha existência material?

Será que eles fazem ideia do quanto isso vai castigar sem pena e sem dó essa fantástica mulher com que Deus presenteou minha vida? Como ela vai se sustentar, ao se ver sem metade do que lhe sustenta? Não vai. E quantas Dos Anjos eles acham que existem por aí?

Sinceramente, dá uma angústia enorme e vontade ainda maior de gritar como um dia gritou o velho Tancredo: “Canalhas! Canalhas! Canalhas!”.

Só peço a Deus que a maioria do nosso Congresso rejeite essa desumanidade. Em vez dela, que aprove leis e mecanismos que possam repor aos cofres públicos o meio trilhão de reais que os grandes devedores da Previdência deixaram de recolher.

Em vez dessa reforma hedionda, que o Congresso aprove leis e mecanismos para taxar as grandes fortunas e as fabulosas remessas de lucros para o exterior. Que aprove leis e mecanismos de cobrança eficiente e combate efetivo à sonegação de impostos e contribuições previdenciárias.

Se nada disso acontecer, só peço a Deus que não me leve antes de Dos Anjos. Um anjo não merece viver nesse mundo de gente tão ruim que a maioria dos meus concidadãos, por ingenuidade ou por acreditar em fake news, colocou no poder.

Agradeço se publicar esta minha inquietação e compartilhar com meus iguais todo o meu pavor diante do que pode vir.

João de Deus.

Fonte: Rubens Nóbrega
Créditos: Rubens Nóbrega