O Dia do Sertanejo

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Nonato Guedes

Soube, através do deputado federal Luiz Couto (PT-PB), que o calendário reserva uma data em homenagem ao sertanejo. Transcorreu a três último e no dia cinco houve registro na Câmara, com a repetição, inclusive, da máxima de Euclides da Cunha de que o homem destas plagas é antes de tudo um forte. O Dia do Sertanejo teria sido instituído em 1960, quando Geraldo Meireles, conhecido como Marechal da poesia típica, propôs um encontro de violeiros em Aparecida, São Paulo, que teria um caráter simbólico de evocação dessa personalidade sofrida que, é ao mesmo tempo, exemplo de fé, garra e coragem ou resistência. Durante muito tempo, forjou-se uma caricatura em torno do sertanejo ou caipira, identificado como rude, inculto e avesso à vida moderna.

Há quem atribua parte de responsabilidade do estigma a Monteiro Lobato, que apresentou à metrópole o Jeca Tatu e o caboclo do Vale do Paraíba, em São Paulo, de barba rala, descalço, com os pés cheios de bichos, fumando cigarro de palha e usando chapéu idem. Esse sujeito não teria ânimo para trabalhar. Seria uma espécie de sombrio urupê de pau podre a modorrar silencioso no recesso das grotas, funesto parasita da terra, inadaptável à civilização. Não considero que seja justo transferir toda a culpa a Monteiro pelo rótulo, da mesma forma como é subjetivo avaliar que a intenção do escritor tenha sido a de desqualificar um personagem rico em histórias e que serviu, na verdade, como braço para o falso brilho dos arranha-céus erguidos em centros que se jactam de um modernismo arcaico. Há obras que mencionam, também, Maurício de Sousa como intelectual que reforçou o estereótipo, por ter figuras como Chico Bento.

Não é o caso de negar que há tipos assim, desfilando pelo solo íngreme do Nordeste. Todavia, a definição é simplista demais para definir pessoas que cultivam a terra em condições adversas, que enfrentam as intempéries da natureza, que gastam o suor do seu corpo para dotar o sertão de uma paisagem menos cruel ou madrasta. Avaliar, igualmente, que tenha ocorrido mudança de concepção de valores por causa dos cantores da música sertaneja, com suas baladas plangentes, continua sendo insuficiente. E mais estúpido é dizer-se que a moda country, importada dos Estados Unidos e adaptada à realidade brasileira, tenha conferido autenticidade às raízes sertanejas do Nordeste do Brasil. Se é importada, não pode refletir seguramente os nossos hábitos. Ou a compleição do nosso vestuário, ainda que falsificações grosseiras convivam com o artesanato genuíno.

É crível, sim, que vivendo na caatinga, ambiente fustigado pela aridez ou escassez de chuvas, o sertanejo seja um bravo e que poucas civilizações no mundo conseguiram alcançar a façanha dessa gente destemida, tão resistente como o cacto, que serve de alimento quando das estiagens prolongadas e destrutivas. Tentar folclorizar a realidade nordestina como se fosse algo exótico e pouco criativo é querer insultar a inteligência do sertanejo, negar as verdadeiras raízes do folclore, que estão no baião, no coco de roda, no xaxado, nas festas juninas, que somente agora, devido aos eventos da Copa do Mundo e da Copa das Confederações despertam a atenção das autoridades para serem incluídas no calendário de cerimônias rituais típicas do Brasil. Quanto ao provincianismo de que tanto se fala, não passa de pura balela. Há provincianismos latentes em São Paulo, encobertos pela aparência de famílias quatrocentonas, prisioneiras de um fausto que já não há mais. Como há provincianismo em Brasília, a capital do país e capital do Poder, onde, muitas vezes, certos homens se vendem ou se prostituem no tráfico das relações políticas.

O que Euclides da Cunha mostra, sobretudo em “Os Sertões” é a convivência de vários Brasis dentro de um só Brasil, ou seja, o fenômeno da miscigenação de raças, da pluralidade ou da diversidade cultural, abafando mitos de sobrevivência de raça ariana ou de sub-raças, desvendando, aí sim, a infinidade de combinações multirraciais. Entre tantas riquezas naturais do sertão nordestino acode-me a lembrança da Missa do Vaqueiro, evento da cultura popular do sertão pernambucano, gerado a partir do assassinato traiçoeiro do vaqueiro Raimundo Jacó. A primeira missa foi idealizada por Luiz Gonzaga, o Rei do Baião. E é a ele que rendo minhas homenagens, ao constatar que há um Dia do Sertanejo, ainda que a transposição do “velho Chico” demore e que o solo continue inóspito, desafiando a bravura do homem simples.