A competência faz, sim, a diferença
JOSÉ SERRA
O Estado de SPaulo
Outro dia, numa palestra para jovens, surpreendi-me com os números do banco de dados que mantenho no computador. O produto interno bruto (PIB) per capita do Brasil é o 81.º do mundo. O nosso Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é o 83.º. Mais desconfortável ainda: nosso PIB per capita cresceu apenas 1% ao ano nos últimos 32 anos; o da China, 6,9%; o do Chile, 3%; o dos EUA, 1,5%; o da Índia, 4,3%. É inútil aquela conversa de que o PIB não é tudo, a qualidade de vida é que importa. Pode não ser tudo, mas é a base principal do bem-estar, o que se constata pela proporcionalidade existente mundo afora entre PIB per capita e IDH.
De 1870 a 1980 a economia brasileira foi a que mais se expandiu no mundo, particularmente entre 1930 e 1980. O PIB per capita expandiu-se ao ritmo de 3% a 4% ao ano. Se quisermos recuperar algo do tempo perdido e atingir em 15 anos uma renda per capita equivalente à metade da que hoje têm os países mais desenvolvidos, o PIB brasileiro teria de crescer a 5,3% ao ano! Utopia? Como mobilizar forças e inteligência da sociedade para a gente mudar de patamar?
Há uma espécie de teoria neomalthusiana por aí a sustentar a impossibilidade de taxas elevadas de crescimento no Brasil e no mundo em razão de barreiras ambientais e da anarquia nos padrões de desenvolvimento em escala internacional. Thomas Malthus foi um grande economista inglês da virada do século 18 para o 19. Simplificando, ele constatava que a Inglaterra e o mundo estavam destinados à estagnação, pois a população crescia em progressão geométrica, enquanto a oferta de alimentos se expandia em progressão aritmética. Confundia eventuais ciclos de escassez de oferta com uma tendência de longo prazo. É óbvio que a teoria não se confirmou, mas ao longo dos últimos dois séculos renasceu com variantes, chegando até o Banco Mundial, na época de Robert McNamara, e o Clube de Roma, ainda nos anos 1970. Enfatizava-se o esgotamento dos recursos naturais necessários ao crescimento econômico. Foi ressuscitada recentemente pelos que apontam os efeitos da acumulação de danos ao meio ambiente causados pelo desenvolvimento da economia mundial.
Trata-se de uma teoria pessimista, que subestima as possibilidades tecnológicas que permitem combinar crescimento e defesa ambiental. É também uma teoria cruel para as camadas da população que ainda aguardam melhores empregos, mais consumo e mais e melhores serviços públicos, os quais, como se sabe, exigem não só melhor utilização dos recursos fiscais existentes, mas também mais atividade econômica que gere novas receitas tributárias.
A lentidão brasileira das últimas décadas teve sucessivos panos de fundo. Nos anos 1980 foi o da insolvência externa e da superinflação – nuvem de poeira quente que sufocou o crescimento e derrubou tanto a autoestima nacional como as expectativas a que nos tínhamos acostumado quanto às possibilidades da nossa economia.
Nos anos 1990 pagamos o preço da derrubada do galope inflacionário – em duração, era a maior superinflação do mundo -, sem que o cenário externo fosse tão favorável: nossos índices de relações de troca com o exterior se deterioraram. Além disso, sofremos os efeitos de várias crises financeiras em países emergentes – México, Rússia, Sudeste Asiático, Argentina -, que deram lugar a recorrentes ataques ao real. Adicionalmente houve em 2002 o “risco Lula”, candidato presidencial favorito, cujo partido propunha a moratória da dívida com o exterior.
Na década seguinte sobreveio a mais espetacular bonança externa que já cercou nossa economia: forte ascensão dos preços de nossos produtos agrominerais, muitíssimo acima da média histórica, além da baixa taxa de juros internacional. Tivemos algum crescimento no período, revertido, porém, em razão dos desequilíbrios que se foram acumulando. De fato, os benefícios da bonança externa foram torrados em importações de bens de consumo, em grande medida substitutos da produção industrial doméstica, que cresceu menos ou sofreu verdadeiro colapso, com a intensificação da farra cambial de 2008-2011. Um ciclo expansivo baseado no consumo, com investimentos baixos, destruição de capacidade produtiva e aumento do custo Brasil – nesse caso, em razão da carga tributária elevada e das deficiências de infraestrutura. Não poderia ir longe. E não foi.
A bonança externa passou, embora sem virar tempestade. Seu lugar no cenário foi ocupado pelo déficit em conta corrente do balanço de pagamentos, rumando neste ano para cerca de US$ 80 bilhões, perto de 4% do PIB. Só para conter a desvalorização rápida da taxa de câmbio o governo já ceifou, desde maio, por intermédio de swaps, mais de 20% das reservas. O elevado custo Brasil, que subtrai uns 25% (noves fora a taxa de câmbio) da nossa competitividade, enfraquece as exportações brasileiras de manufaturados e garante crescente fatia do mercado interno aos importados.
Como já escrevi nesta página, essas dificuldades, aliadas às demandas nas áreas de educação, saúde e segurança, cairão no colo do próximo presidente, seja ele quem for. Não acredito na possibilidade de enfrentar todos os problemas de uma só vez nem naquele famoso expediente de resolver tudo com uma bala na testa do tigre. Mas não creio que na vida econômico-social haja situação sem saída. As deficiências da infraestrutura de transportes e energia, por exemplo, acenam com um vetor de dinamização da economia de dois modos: de um lado, cria demanda e emprego; do outro, aumenta a produtividade dos fatores. Tais investimentos, hoje, ao contrário do que se pensa, não estão limitados pela escassez da poupança governamental – de resto, é possível atrair recursos privados -, mas pela incapacidade de se definirem as prioridades e se executarem os projetos.
A competência humana consiste justamente em não nos deixarmos tragar por fatores que não são da nossa escolha. A competência, caros leitores, pode, sim, fazer a diferença.