Internação compulsória, higienismo e eutanásia
Analice Gigliotti/Correio Braziliense
O último Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Lenad) mostrou um número preocupante: 2,6 milhões de brasileiros são usuários de crack ou cocaína e metade deles é dependente dessas substâncias. A mesma pesquisa, divulgada em setembro do ano passado pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), apontou que 46% dos que consomem a droga são provenientes da Região Sudeste. Apesar da falta de dados oficiais da quantidade em cada estado, sabe-se que Rio de Janeiro e São Paulo têm a maior concentração de casos da região, especialmente em suas capitais. Não por acaso, foram nesses locais as primeiras manifestações do poder público em prol da , ou seja, sem o consentimento do paciente, como forma de solucionar um antigo problema.
Apenas nos oito primeiros meses do ano passado, o governo municipal da capital paulista apreendeu mais de 15 mil pedras de crack no centro da cidade. No Rio de Janeiro, a prefeitura acolheu, nos dois últimos anos, 6,5 mil dependentes em abrigos temporários. Entretanto, os abrigados voluntariamente retornam às ruas e voltam a consumir, dias após a internação, e geralmente nos mesmos lugares, bem embaixo do nariz do poder público. Cabe aqui um esclarecimento: a dependência química é uma doença cerebral. Ela leva a uma redução do funcionamento de circuitos neuronais, responsáveis pela nossa capacidade decisória. Assim, quem sofre dela, na maior parte das vezes não tem condições de decidir se precisa ou não de tratamento.
O que fazer então? Deixar essas pessoas morando na rua, expostas a todas as consequências do consumo das drogas? A questão se agrava quando se fala de usuários que estão colocando em risco a própria vida. Se por um lado eles incomodam a paz pública, por outro eles estão morrendo a olhos vistos. A passou então a ser uma opção. Desde janeiro, o governo estadual de São Paulo oficializou a medida. Assim, qualquer pessoa que presencie um usuário de drogas atentando contra a própria vida ou contra a vida do outro pode entrar em contato com as autoridades, que permitirão o acolhimento do paciente, mesmo contra a vontade dele.
Em fevereiro, a Prefeitura do Rio de Janeiro realizou as primeiras operações nas cracolândias. Entre os cerca de 3 mil abrigados, já nas primeiras operações, era grande a quantidade de pessoas que apresentava doenças relacionadas ao uso da droga, incluindo desnutrição. A polêmica de tal medida deve-se justamente ao fato de que muitos daqueles que são internados forçosamente são apenas levados a um hospital municipal, que não é especializado no tratamento de dependentes de drogas. Lá eles permanecem por pouco tempo e não recebem o atendimento adequado. Feita dessa forma, tal medida acaba por se tornar antiética e desumana, com propósitos visivelmente higienistas.
Por seu lado, o que fazer com um indivíduo que, se deixado à própria sorte, claramente terminará por morrer devido a uma doença? O que você faria se encontrasse uma pessoa atropelada no meio da rua, desacordada? Esperaria ela voltar à lucidez para verificar se deseja socorro? Dependentes de droga podem escolher morrer? Não internar compulsoriamente esses indivíduos seria uma espécie de eutanásia pública. É acreditar que o dependente tem a mesma clareza de raciocínio que alguns pacientes terminais, quando desejam optar por encurtar sua jornada até a morte. E mesmo isso é polêmico. Como dito anteriormente, dependentes graves não têm capacidade de escolha, e por vezes cabe à família ou ao Estado zelar pelo direito deles à saúde e à vida. Sob esse ponto de vista, a é plenamente defensável.
Mas, para que a política que vem sendo adotada realmente apresente resultados, é preciso que todas as cidades que enfrentam a ameaça do crack estejam equipadas para atender os dependentes de forma adequada. É preciso que disponham de espaço físico, medicamentos e profissionais habilitados para o tratamento. Caso contrário, corre-se o risco de “amontoar” as pessoas em abrigos, transformando-os em “depósitos humanos”, incapazes de recuperar qualquer pessoa. O objetivo não é esconder o problema dos olhos da população, mas sim resolvê-lo de forma responsável e humana.