A terceirização do Hospital de Trauma de João Pessoa transformou-se em fonte de irregularidades patrocinadas com recursos públicos, segundo auditoria realizada em 2013 pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE). A investigação mostrou que a chamada gestão pactuada não apenas dobrou os gastos com o hospital (de R$ 4,5 milhões em 2010 para R$ 9,1 milhões em 2013) como esse dinheiro financiaria supersalários e mordomias para dirigentes e consultores da Cruz Vermelha do Rio Grande do Sul, organização à qual o atual governo terceirizou o HT desde o primeiro semestre de 2011.
No trabalho de investigação, auditores do TCE descobriram despesas e pagamentos tão vultosos quanto estranhos nas relações contratuais entre Estado e Cruz Vermelha. Nessa linha, os “achados de auditoria” representariam desvios de mais de R$ 8 milhões em desfavor do erário. Parte dessa quantia teria sido empregada, por exemplo, no aluguel de apartamentos para servir de moradia ou hospedagem a diretores, gerentes e outras pessoas com as quais a CV faz negócios. Outra parte do dinheiro banca viagens aéreas sem comprovação dos gastos com bilhetes e taxas e até a compra, para funcionários, de sapatos que jamais teriam calçado os pés de qualquer deles.
As falhas detectadas pela auditoria do ano passado somam-se a uma série de outras denúncias e questionamentos contidos em ações na Justiça propostas por instituições como o Ministério Público do Trabalho, Ministério Público Federal, Ministério Público Estadual, através de sua Promotoria de Saúde em João Pessoa, e Conselho Regional de Medicina da Paraíba (CRM-PB).
Além disso, a terceirização do Trauma é alvo de críticas e revelações do Tribunal de Contas da União (TCU) e do Departamento Nacional de Auditoria do Sistema Único de Saúde (Denasus), que também descobriu aplicações consideradas indevidas dos recursos do contrato com a CV e, por essa razão, cobra das partes envolvidas a devolução de mais de R$ 6 milhões aos cofres públicos.
Nos registros da auditoria do TCE, encontram-se ainda informações que comprometeriam a gestão terceirizada pelo fato de a Cruz Vermelha utilizar a força de trabalho de servidores estaduais pagos pelo Tesouro, além de dispor como quiser e bem entender de todos os bens móveis e imóveis e equipamentos de um hospital do tamanho e da importância do Trauma. Em acréscimo, sobressai opinião da auditoria de que “o Estado da Paraíba não pode transferir a uma instituição privada toda a administração finalística dos serviços de saúde de um hospital público, por impossibilidade constitucional, legal e normativa”.
Sob esse entendimento, o contrato com a Cruz Vermelha é inconstitucional e fere a Lei nº 8.080/90 (Lei do SUS) no seu artigo 24, que admite a participação complementar da iniciativa privada – não a substituição do Estado – na oferta e operacionalização de serviços públicos de saúde, mas apenas quando o Sistema Único de Saúde não tiver disponibilidade suficiente para garantir a cobertura assistencial à população em determinadas áreas.
ALUGUEL DE MORADIAS CONSOME R$ 264 MIL
Para se ter uma ideia da diversidade dos gastos que a Cruz Vermelha faz com o dinheiro do Estado, ano passado, somente com o aluguel de dez apartamentos foram pagos R$ 264 mil à empresa Souto Maior Construções e Incorporações Ltda. Os apartamentos foram alugados no edifício residencial Allure, situado na Rua Sílvio Coelho de Alverga, 180, Bessa, em João Pessoa, para servir de moradia eventual ou regular de cinco diretores, quatro gerentes e consultores de empresas terceirizadas que prestam serviço ou fornecem algum produto à gestora do Trauma.
Os apartamentos têm três quartos e área privativa total de aproximados 98 metros quadrados. A auditoria do TCE solicitou explicações formais aos gestores responsáveis, sob pena de imediata devolução dos R$ 264 mil aos cofres públicos, “por clara afronta aos princípios da economicidade e moralidade pública, ambos previstos na Carta Constitucional Brasileira”. Os auditores lembram, a propósito, que os diretores do Trauma já recebem ajuda de custo dentro das suas remunerações em folha de pagamento oficial do hospital.
A remuneração dos diretores, aliás, também surpreendeu a auditoria do tribunal. O relatório constatou diferenças salariais entre os seis diretores do hospital sem explicações técnicas que possam motivar as discrepâncias. Assim, enquanto o superintendente do Trauma recebe mensalmente em torno de R$ 15 mil, o diretor técnico Edvan Benevides de Freitas Júnior ganha R$ 22.400 por mês, mais do que secretário de Estado (cerca de R$ 18 mil), vice-governador (R$ 20 mil) e quase igual ao governador, que percebe um salário bruto de R$ 23.500,82 por mês.
Os demais diretores do HT e da Cruz têm salários que variam de R$ 12.300 a R$ 18.600. O custo mensal com a folha da diretoria do Hospital de Trauma alcança quase cem mil reais (R$ 98.400), excluindo encargos sociais, custo considerado vultoso para apenas uma unidade hospitalar. Tanto assim que, no Hospital de Trauma de Campina Grande, de porte e complexidade semelhantes ao de seu congênere na capital, os diretores percebem gratificações que não ultrapassam os R$ 5 mil por mês. Além disso, o HT campinense conta com apenas três diretorias.
A auditoria do TCE sugeriu revisão dessas remunerações, com limites comparativos às demais unidades hospitalares do Estado com similaridade operacional evidente. Vale salientar que o quadro geral de pessoal do Trauma é composto por 1.719 funcionários, sendo 1.210 empregados celetistas e 509 servidores estaduais estatutários. O custo médio da folha celetista em 2013 foi de R$ 2.100.000,00 e a dos estatutários, de R$ 627 mil.
A reportagem entrou em contato com a diretoria do Hospital de Trauma, mas, até o fechamento desta edição, não obteve retorno.
SAPATOS: GASTOS DE QUASE R$ 10 MIL
A auditoria do TCE descobriu também que o Hospital de Trauma realizou despesas de R$ 9,8 mil junto à empresa Jackson Carneiro da Silva na compra de sapatos para empregados, não constando entrada de tal mercadoria no sistema informatizado de estoques da instituição.
A auditoria fez inspeção no endereço comercial da firma fornecedora, que consta no cartão do CNPJ. Nada encontrou, a não ser uma porta fechada nas dependências do centro comercial em João Pessoa.
“Ante o exposto, esta unidade técnica considera insuficientemente comprovada a despesa no valor de R$ 9.800,00, pelo que pugna pela sua devolução ao erário estadual, via imputação de débito aos responsáveis”, afirma a auditoria, que apresenta, como provas, registro fotográfico da fachada do prédio onde deveria ficar a sede da empresa.
MAIS DE R$ 600 MIL COM PASSAGENS
Os gastos com passagens aéreas também estão na mira do Tribunal de Contas. Conforme a auditoria, a Cruz Vermelha efetuou diversos pagamentos a empresas comerciais a título de aquisição de passagens aéreas. Detalhe: não há comprovação jurídico-documental dos gastos, discriminando os beneficiários, datas e motivo determinante de cada viagem.
A empresa Lakshmi Viagens e Turismo é uma das beneficiadas pela Cruz Vermelha. Pagamentos no valor total de R$ 152.632,10 foram efetuados à empresa, sem comprovação material e documental. O mesmo aconteceu com a empresa Classe A Representações Ltda., só que no valor de R$ 451.841,53. Destes, apenas R$ 179.641,61 foram comprovados como pagamentos de passagens aéreas para diretores e gerentes do hospital, mesmo assim sem qualquer correlação com suas atribuições.
Por conta disso, o tribunal pede comprovação dos gastos da ordem de R$ 604.473,63 sob pena de imputação do débito aos gestores e devolução dos valores ao erário.
DO JORNAL DA PARAÍBA.