Depois de ter o passaporte quase arrancado das mãos pelo casal, um suíço e uma brasileira, a mulher de 53 anos passou a trabalhar 18 horas por dia, sob gritos e xingamentos, dormindo desagasalhada em um ambiente sem aquecimento. Acabou doente e com depressão.
Ela conseguiu voltar ao Brasil com a ajuda de uma ONG que auxilia vítimas de tráfico de seres humanos e resgata em média de duas a três pessoas por mês – o Projeto Resgate atua com foco na Suíça, Alemanha e Itália, países onde há recorrentemente casos de brasileiros traficados para exploração laboral e sexual.
A maioria das vítimas resgatadas pela ONG é composta por mulheres na faixa dos 30 anos, que só estudaram até o terceiro ano do ensino primário. Elas normalmente estão no Brasil em condição socioeconômica de pobreza e são atraídas por ofertas de vagas para babá e faxineira, com salários de até mil francos (R$3.750).
É o caso de Sandra, que diz não ter denunciado a ex-patroa à polícia por não ter visto formal de trabalho e por temer que as ameaças de retaliação recebidas se concretizem. “O meu medo é que ela tem o meu endereço aqui no Brasil. Ela tem dinheiro e pode pagar alguém pra vir aqui fazer algum mal para mim, pra minha filha ou para minha neta.”
Um membro da ONG que a resgatou foi até a residência onde ela trabavalha em busca dos pertences de Sandra. “Não queriam abrir a porta e sequer devolver a mala. Entregaram só metade das coisas e jogaram água dentro. É triste de ver, às vezes são brasileiros explorando outros brasileiros sem misericórdia.”
Antes de serem vítimas de maus-tratos e violência sexual, esses brasileiros acreditam em promessas de trabalho fácil ou romances encantados e acabam enredados em casos que envolvem, por exemplo, dívidas, chantagem, submissão e abuso.
Tráfico de pessoas
Pela definição do Protocolo de Palermo, o tráfico de pessoas é “o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas” recorrendo à ameaça, uso da força e a outras formas de coação como rapto, fraude, engano, ou abuso de autoridade para fins de exploração.
Há subnotificação porque alguns não consideram estar em regime de abuso ou têm medo de denunciar, explicou à BBC News Brasil Kristiina Kangaspunta, chefe do departamento de combate ao tráfico e seres humanos na UNODC, a agência da Organização das Nações Unidas contra Drogas e Crime.
Segundo ela, para cada vítima registrada, há pelo menos outras cinco que não são identificadas, o que favorece a impunidade.
“Muitas pessoas são ludibriadas a entrar em uma situação de ilegalidade e provavelmente esse é o caso de muitos brasileiros na Suíça. Uma vez trabalhando ilegalmente, os imigrantes não acreditam que estejam sendo abusados, mas sim enxergam a si mesmas como infratoras”, diz Kangaspunta.
Números inconclusivos
Em relatório bienal, a UNODC estima que, dentre as pessoas vítimas de tráfico de pessoas na Europa, 66% são para exploração sexual, 27% são para serviços forçados e 7% para outros tipos de violência. O levantamento mais recente, de 2018, cobriu cerca de 50% da população mundial e avaliou que havia 25 mil casos reportados nesse contexto.
Uma outra agência da ONU, a Organização Internacional para Migrações (OIM) lançou no ano passado o maior banco de dados do mundo sobre tráfico de seres humanos. Há 91.416 casos documentados pela IOM em 172 países.
Segundo os dados desse levantamento, na Suíça é apenas perceptível a tendência migratória oriunda do leste. Hungria, Tailândia e Romênia aparecem como principais países de origem das vítimas.
Esse levantamento da IOM não especifica ranking global de origem e destino, mas registra 7.500 casos de vítimas oriundas das Américas. A grande maioria dessas vítimas foi explorada dentro do próprio continente.
Pelo perfil do Brasil nesse levantamento, 32% dos brasileiros traficados são levados ao trabalho forçado e 62% sofrem exploração sexual.
A reportagem contatou a diplomacia brasileira na Suíça em busca de números do tráfico de brasileiros na Europa e foi encaminhada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública em Brasília.
A Coordenação-Geral de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Departamento de Migrações do Ministério da Justiça e Segurança Pública do Brasil informou à BBC News Brasil que “não há informações específicas sobre países-destino de brasileiras” vítimas do tráfico e encaminhou um relatório nacional com o levantamento da situação de 2014 a 2016.
O documento afirma que “não existe no Brasil um sistema único, integrado e confiável de estatísticas criminais” e que para a “produção de um diagnóstico nacional, é necessária a padronização”. “Um dos problemas que compromete a consistência de análises comparáveis é a heterogeneidade das categorias e critérios adotados para classificar as ocorrências”, reconhece o texto.
Ainda assim, o levantamento enumera dados de diferentes fontes para dar uma visão panorâmica do problema. Segundo registros da Polícia Federal, por exemplo, de 2007 a 2016 o tráfico internacional de pessoas para fins de exploração sexual gerou 137 inquéritos e 287 indiciamentos.
Já de 2014 a 2016 o Conselho Nacional de Justiça registrou 370 processos criminais por tráfico internacional de pessoas (297 em primeiro grau e 73 em segundo). Não está detalhado, porém, quantos desses processos se referem a vítimas brasileiras no exterior e quantos são de vítimas estrangeiras no Brasil.
Outra fonte citada no relatório, a Secretaria Nacional de Políticas para Mulheres (SPM), aponta uma tendência de recorrente incidência de tráfico de pessoas (interno e internacional) para fins de exploração sexual. Em três anos (2014, 2015 e 2016), foram informados 488 casos de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, dos quais 189 são de tráfico internacional e 299 de tráfico interno, além de 257 para fins de trabalho escravo.
Já pelas estatísticas oficiais do governo suíço, se somados os episódios de aconselhamento e compensação tanto de tráfico de seres humanos quanto de prostituição, em 2017 houve uma totalidade de 305. No ano anterior esse mesmo total era de 314 casos e em 2015 fora de 271 casos. Desde 2010 os registros vem oscilando ano a ano. O mínimo observado foi de 203 vítimas (em 2011) e o máximo foi de 331 em 2013.
Desde 2006, a Organização não governamental Projeto Resgate, que foca principalmente em imigrantes latino-americanos, resgatou mais de 400 indivíduos na condição de exploração. Todos contam a mesma história: chegaram com o sonho de começar uma vida nova e acabaram sendo abusados.
A organização é sustentada por doações cristãs. Praticamente um terço dos fundos vem da arrecadação da Igreja Batista Brasileira, entidade fundada antes do projeto e que é a principal mantenedora do mesmo. A ONG também recebe doações de igrejas Reformadas, Evangélicas e Católicas além de Fundações e pessoas privadas.
Jimmy Medeiros, voluntário da ONG, narrou à BBC News Brasil algumas das histórias que vivenciou ao longo dos oito anos em que atuou com imigrantes.
Marido obrigava a esposa a comer fezes
Em 2004, o pastor Vicente Medeiros esteve pela primeira vez na Suíça e ouviu o relato de uma brasileira que vinha sendo humilhada pelo marido abusivo.
Ela havia sido atraída pelo sonho de se casar com um europeu e oferecer uma vida melhor aos seus filhos. Depois de se mudar para a Suíça e entrar em uma situação de dependência econômica e psicológica do marido, a vítima foi obrigada a se submeter a práticas sexuais degradantes.
“Ela veio até nós e disse: ‘Não aguento mais comer merda!’ E, chorando, nos contou que o marido usava drogas, defecava e a obrigava a comer, porque era isso que o estimulava sexualmente. Perguntamos ‘por que você não o deixa e vai embora para o Brasil?’ ‘Não posso. Eu tenho filhos no Brasil e ele me ajuda financeiramente’, relatou Jimmy.
Com o apoio dos cristãos, a mulher conseguiu fugir da relação disfuncional poucos meses depois. “Esse foi o caso que mais sensibilizou o meu pai e o encorajou a dar início a todo o trabalho”, recorda.
O projeto então teve seu início, em 2005, após um levantamento indicar que havia muitas outras brasileiras em condição semelhante necessitando auxílio.
Prostituía-se para comer
Uma mulher de 36 anos, que acreditava ter encontrado um “príncipe encantado”, virou escrava doméstica e sexual do marido suíço, sendo obrigada a se prostituir para se alimentar.
No início, eles viveram um período de lua de mel, mas depois de casar formalmente no começo de 2017, passou a conhecer o lado agressivo do marido.
Ela foi forçada a dormir trancada no porão, onde um balde servia de banheiro.
O marido escondeu o passaporte e exigiu que ela pagasse pela comida que consumia, além de lavar, passar, limpar e cozinhar para os quatro homens adultos que moravam na casa.
“Eu tinha conhecido ele pelo WhatsApp através de uma amiga e acreditei na promessa”, relatou ao Projeto Resgate. “Deixei minhas duas filhas no Rio para me casar com ele, mas nunca imaginei que ele seria assim”. Depois de ser resgatada, retornou à comunidade carioca onde vivia e tem recebido apoio espiritual.
“Muitas pessoas não conseguem sair desse ciclo de abuso, porque não querem aceitar que o sonho não deu certo”, afirma Jimmy Medeiros, da ONG.
Vagas falsas de emprego
Beto conheceu pela internet uma mulher da Suíça alemã e vendeu tudo para empreender na Europa, queria tentar abrir um negócio na Internet. A nova amiga se dispôs a ajudá-lo e hospedou o recém-chegado.
A situação mudou quando a mulher pediu um empréstimo e ele entregou todo o seu dinheiro a ela. No Brasil ele vendera o carro para comprar a passagem e chegara com pouco mais de mil Francos em economias (R$3750). Segundo ele, a partir daí passou a ser chantageado em troca de favores sexuais. Ele resistiu à chantagem.
Pouco mais de um mês depois de chegar Beto tomou coragem para fugir quando finalmente descobriu os planos da suíça: reformar a casa para montar um bordel. Uma manhã, quando ela saiu de casa para lavar roupa, ele decidiu sumir. Após três noites, conseguiu retornar ao Brasil com a ajuda da ONG.
Felipe morava no Norte do Brasil quando foi abordado por uma mulher que o encontrou na internet e se apresentava como agente de modelos na região francesa da Suíça. Felipe e a noiva no Brasil acharam que a promessa de trabalho era genuína e seria uma ótima oportunidade de economizar para a festa de casamento.
Ao chegar à Suíça, porém, ele foi levado diretamente do aeroporto para uma sauna gay, onde teve o passaporte retido e foi informado de que ficaria aprisionado até que pagasse o valor da passagem, estadia e alimentação. Os captores disseram a Felipe que ele devia 5.000 euros (equivalente a R$21.200).
Após se submeter à prostituição forçada por vários dias, aproveitou que a porta da sauna foi deixada aberta e fugiu abandonando todos seus pertences. Gritando por socorro na rua, foi acudido por uma mulher que falava português e o levou à polícia e ao consulado brasileiro. A ONG não soube informar se a polícia chegou a prender a gangue que explorou Felipe, porque não teve acesso às investigações.
Capoerista no Brasil, Ricky recebeu uma proposta de atuar como professor dessa arte na Suíça pelo salário de mil francos (R$3.750) mas, ao chegar à Europa, foi informado de que a escola ainda não havia sido inaugurada e se ele quisesse esperar teria que se apresentar pelas ruas da Suíça.
Passou então a viver de esmolas, mas seus “futuros empregadores” estavam sempre seguindo seus passos e exigiam uma “taxa” de tudo o que ele recebia. A pessoa que o trouxe à Europa o levava nas praças para fazer as apresentações de Capoeira e controlava o chapéu com o dinheiro.
O capoeirista foi informado de que só receberia um salário depois que a dívida de cinco mil francos (R$18.700) em passagem e alojamento tivesse sido quitada.
Uma noite, sem dinheiro sequer para comer, Ricky ouviu dos suíços que teria que se prostituir se quisesse sobreviver. O brasileiro então entendeu que esse era o plano dos seus aliciadores desde o início e, na manhã seguinte, quando saiu para trabalhar nas praças, fugiu correndo.
Como Ricky era esportista, o captor suíço que o acompanhava não conseguiu alcança-lo. Gritando em português “alguém me ajude”, foi resgatado por um suíço, cuja namorada era brasileira, que ouviu e compreendeu o apelo. O suíço levou Ricky à Policia. Posteriormente o brasileiro foi ao Consulado, que o encaminhou para o Projeto Resgate.
“As pessoas precisam saber para onde estão indo, o que irão fazer e no que estão se metendo. Se forem trabalhar, precisam conferir a reputação da agência, a situação do visto, para ver se é sólida a oportunidade de emprego. Não se deve viajar apenas baseado em promessas”, alerta Kangaspunta, da UNODC.
Fonte: Terra
Créditos: Marina Wentzel