“Pai, é verdade que você matou centenas de pessoas”? Certamente, esta não é uma pergunta que os filhos sentem a necessidade de fazer aos pais. Mas para um grupo de mulheres na Argentina, se tornou urgente e inevitável.
Os pais delas foram acusados e, em muitos casos, condenados por alguns dos piores crimes cometidos na história recente do país — eles eram policiais e militares na época da ditadura.
Por quase sete anos, desde o golpe em 1976, os governos militares que controlaram a Argentina perseguiram seus oponentes políticos — comunistas, socialistas, estudantes, artistas, líderes sindicais… todos que consideravam uma ameaça — e sequestraram, torturaram e mataram milhares de cidadãos.
Esta é a história de duas filhas destes homens que, depois de quatro décadas, levantam publicamente suas vozes contra seus pais.
O temido Doutor K
Analía Kalinec, de 40 anos, tem olhos claros, grandes e silenciosos. Ela se apresenta e conta sua história: “Sou professora, psicóloga, mãe de dois filhos… e também filha de um genocida.
Meu pai nasceu em 1952, no seio de uma família de classe média que tinha dificuldades econômicas. Ele abandonou os estudos no terceiro ano do ensino médio e decidiu entrar na Polícia Federal por volta de 1973, muito jovem.
Nasci na ditadura e sempre soube que meu pai era policial, não nos perguntávamos o que ele fazia ou deixava de fazer. Em casa, ele era um pai muito presente, mas nunca perguntei nada a ele.
Éramos uma ‘família típica’, que se reunia para comer churrasco, ir ao clube da polícia e pescar… Meu pai era o pai provedor, muito querido, muito respeitado dentro de casa.
Nós éramos quatro irmãs e vivíamos na nossa bolha. Depois, fomos nos casando e tendo filhos, como esperavam de nós. Fui a última das quatro, casei com apenas 22 anos… imagine!
E a vida era assim. Até o ano de 2005.
Era o último dia de agosto. Eu estava em casa quando recebi uma ligação. Era minha mãe. ‘Olha, não entre em pânico, seu pai está preso. Mas fique tranquila, ele vai sair (de lá)’.
Até essa ligação, eu nunca havia relacionado meu pai à ditadura, nem de longe… nem de longe.”
O comissário Eduardo Emilio Kalinec foi mantido em prisão preventiva. Ele havia sido mencionado no depoimento de testemunhas e denunciado por crimes graves: 181 vítimas, acusações de sequestro, tortura e assassinato. E tranquilizou a família dizendo que se tratava de uma jogada política contra ele.
“No dia seguinte àquela ligação, visitamos meu pai na prisão. E ele nos disse que não precisávamos acreditar em nada, que muitas mentiras seriam ditas, mas que ele não tinha nada a se arrepender. Que ele tinha saído para lutar em uma guerra e que isso estava acontecendo agora porque ‘revanchistas de esquerda’ chegaram ao poder (uma alusão ao governo do então presidente Néstor Kirchner).
Não entendi nada, para mim a ditadura era algo do passado. Eu estava totalmente alheia ao que estava acontecendo no país. Eu trabalhava em uma escola particular, costumava encontrar minhas irmãs no fim de semana, circulávamos entre famílias de colegas policiais do meu pai — e esse era meu círculo.
Eu não tinha acesso a muitas informações e tampouco tinha interesse. Meus pais também procuraram manter uma postura de neutralidade, ‘não nos metemos em política, somos apolíticos’.
Até que, em 2008, eles levaram o caso dele a julgamento. E comecei a pensar que o que meu pai estava me dizendo não era bem verdade… ”
Kalinec foi um dos 15 réus no primeiro julgamento do chamado Circuito ABO — sigla para os centros clandestinos de detenção Atlético, Banco e Olimpo, que operaram sucessivamente entre 1976 e 1979. Tanto os acusados quanto muitos presos foram transferidos de um centro para outro.
“Eu li o processo, que até aquele momento eu não tinha lido. Li com muita velocidade e pedindo para ‘que o nome dele não apareça, por favor, que o nome dele não apareça’. Não queria pular nenhuma linha para ter certeza de que não havia perdido nada, e de repente apareceu… Kalinec. Lembro claramente daquele momento.
Eu li os relatos das testemunhas, as descrições do que havia sido um campo de concentração. Criar todo esse mapa na minha cabeça e colocar meu pai dentro dele tornou tudo inaceitável e difícil.”
Para os sobreviventes que testemunharam, o pai de Analía era o “Doutor K”. Muitos torturadores usavam um pseudônimo para esconder sua verdadeira identidade.
“Eu sabia que chamavam ele de Doutor K porque ele havia me contado, mas depois negou. Uma vez perguntei por que, e ele me disse que era chamado de doutor porque sempre foi muito correto e parecia um advogado.
Para meu marido, ele deu outra explicação, disse que era por causa de um produto de limpeza que havia na época, a marca Doutor K: era ele quem fazia a limpeza. Terrível. E depois (eu descobri) outro fato não menos importante: ele era o doutor, e a sala de tortura era chamada de sala de cirurgia.
Em seguida, procurei respostas no único lugar que podia: dentro da minha própria família. E deparei com um pai que queria justificar o injustificável e que, quando o repreendi, dizendo ‘como você não fez nada, se há todos esses depoimentos no processo?’, ele acabou confirmando o que eu temia.
E admitiu sua participação.
Meu pai, hoje com 67 anos, fazia parte dos grupos que sequestravam e levavam as pessoas aos centros de detenção clandestinos. Ele tinha 24 ou 25 anos na ditadura. Não dava ordens, apenas executava.
E, mesmo assim, em alguns trechos dos depoimentos, os sobreviventes dizem que era conhecido como alguém muito cruel dentro dos campos de concentração. Eles temiam mais alguns repressores do que outros. E meu pai era um daqueles que metiam medo.”
As vozes das vítimas
Dezenas de testemunhas, em diferentes instâncias judiciais, apontaram Eduardo Kalinec como participante de interrogatórios e sessões de tortura nos centros clandestinos.
Oito delas durante o julgamento do circuito ABO, que o levou a ser condenado à prisão perpétua. Ele foi descrito como um jovem de cabelos escuros, atarracado, com pescoço grosso e voz aguda.
“Muito temido” e “muito cruel” com os presos, segundo os relatos.
Ana María Careaga tinha 16 anos e estava grávida de três meses quando foi levada. O Doutor K a chutava toda vez que a via no banheiro. Em uma ocasião, ele a repreendeu aos gritos por não dizer que estava grávida. “Você quer que eu abra suas pernas e te faça abortar?”
Miguel D’Agostino o identificou como um dos três homens que o submeteram a cinco dias de interrogatório com choque elétrico na “sala de operações”.
Delia Barrera também foi vítima de tortura durante os 92 dias em que ficou detida em El Atlético. Era 1977, e ela tinha 22 anos.
“Estava encapuzada, havia muitas vozes ao meu redor. Até que uma voz diz ‘comecem’, e começaram a me bater. Me arrastaram pelo cabelo para o que chamavam de sala de operações. Havia três salas, e se ouvia quando torturavam outras pessoas na sala ao lado”, contou Barrera à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC.
“Eles me obrigaram a me despir. Me amarraram a uma cama de metal, abriram minhas pernas, prenderam um cabo no polegar do meu pé esquerdo e me fizeram ouvir um barulho: ‘shhhhh’. E me disseram: ‘Você já conhece? Bem, agora vocês vão se conhecer’. E começaram os choques elétricos.”
“Me acusaram de colocar bombas no departamento de polícia, o que eu nunca fiz. Me pediram nomes de colegas de militância. E a tortura não parava… ”
“Eles me bateram muito e me levaram para a enfermaria, um repressor a quem chamavam de Doutor K me interrogou, então pensei: ‘Ah, um médico’.”
“Ele disse que eu tinha quebrado as costelas, mas que não iria me enfaixar porque eu podia me enforcar com as ataduras. Consegui dar uma espiada, o capuz estava meio levantado e nunca esqueci o rosto de Kalinec. No julgamento, estava com gel no cabelo, mas ainda tinha o bigode. Quando os juízes me perguntaram se eu reconhecia alguém, eu disse: ‘Aí está o Doutor K, Kalinec’. Eu não poderia esquecer Kalinec.”
Delia foi libertada e viveu para contar esta história, com sequelas físicas e mentais. Traumas do choque elétrico, uma costela mal cicatrizada, repetidas tentativas de suicídio.
Outros não tiveram a mesma sorte. Entre eles, seu marido Hugo Alberto Scutari. Ela não voltou a vê-lo desde que dividiram uma cela por algumas semanas no El Atlético. Hoje, ele é um dos presos políticos do regime desaparecidos: as organizações de direitos humanos estimam que são cerca de 30 mil, embora não haja um consenso sobre o número exato.
As cartas
Analía confrontou o pai com as evidências apresentadas no processo judicial.
“Depois de uma conversa na prisão, onde ele ficou muito desconfortável e nervoso, senti uma espécie de libertação. Voltei para casa e escrevi Carta aberta a um repressor. Na minha família, sempre escrevíamos cartas. E usei o nome ‘repressor’. Agora é completamente naturalizado, mas essa palavra precisou ser colocada… E como eu não podia dizer na cara, eu escrevi.”
Aquele dia na prisão foi, sem que eu soubesse, a última vez que vi meu pai.
Não imaginava nem de longe a dimensão que a rebeldia de me atrever a duvidar dele tomaria. Além disso, havia toda a censura da minha mãe e das minhas irmãs: ‘Como você vai dizer isso a ele, justo neste momento em que ele mais precisa de nós, temos que estar unidos, e você vem com isso!’.
Minhas irmãs, que também são policiais, sempre ficaram do lado do meu pai. Hoje, não me relaciono com elas.
Naquela época, também comecei, além das cartas, a fazer um registro narrativo pessoal pensando nos meus filhos — e em como explicar a eles que, de repente, ficaram sem avós, sem primos, sem tias.
E a coisa começou meio verborrágica, contei a eles toda a verdade. Ao ponto de um dia me ligarem da creche: ‘Olha, precisamos marcar uma reunião, porque Gino (filho mais velho, então com 4 anos) disse aos colegas de turma que o avô dele estava na prisão porque havia matado muitas pessoas’. E os colegas começaram a perguntar se ele tinha metralhadoras, se tinha tanques… A professora ficou chocada.
É um exercício constante conciliar essa imagem do Doutor K com a do pai amável. No que se refere à vida em família, lembro dele fazendo cócegas, nos abraçando…
Em um primeiro momento, a dissociação foi mais forte. Me lembro de dizer ‘de um lado está meu pai, e do outro lado, o genocida’. Mas ao trabalhar isso na terapia, acabei reconhecendo que não, que é sempre a mesma pessoa, uma única pessoa com uma parte que mantém oculta, mas que faz parte dela e que não me engana mais.”
Kalinec foi condenado à prisão perpétua em dezembro de 2010 por homicídio qualificado, tortura e privação ilegítima de liberdade, crimes agravados por terem sido cometidos por um funcionário público. Ele nega as acusações.
Dos quase 3,3 mil investigados por crimes contra a humanidade desde que os julgamentos foram reabertos, em 2007, 962 pessoas foram condenadas em 238 processos, segundo o último relatório da Procuradoria de Crimes contra a Humanidade. Ainda há mais de 350 processos em tramitação.
Agente da polícia infiltrado
Mas nem todos os ex-membros das forças de segurança chegam ao banco dos réus. O pai de Paula* é um deles.
“Nasci em Buenos Aires em 1980, quando a ditadura estava em pleno apogeu.
Desde que me dei conta de que o que havia acontecido na ditadura era responsabilidade do meu pai, que ele havia trabalhado para eles, esse sentimento de vergonha e culpa me acompanha, como se eu fosse cúmplice. Porque eu sei tudo isso e não há nada que eu possa fazer. Guardo um segredo que não quero guardar.
Meu pai nunca foi levado à justiça. Como tenho certeza de que ele é culpado? Bom, porque ele me disse. Eu sei que ele fez parte da repressão, porque ele me disse. Meu pai trabalhava para os serviços de inteligência, provavelmente como espião.
Quando eu tinha 14 anos, meu pai levou meu irmão e eu para tomar um café e nos disse que era policial. Não tínhamos ideia. Ele contou que havia participado da “guerra contra a subversão”, como ele chamava. E estava orgulhoso, se sentindo um herói. Naquela época, eu não entendi. Demorou um tempo, levei uns dois meses para digerir a informação.
Ele costumava se infiltrar em diferentes grupos de estudantes, de assistentes sociais ou de qualquer perfil que os militares não gostassem. E ‘marcava’ os militantes, passando o nome deles aos seus superiores.
Ele era muito jovem, tinha 20 e poucos anos e, pelas fotos que havia em casa, não parecia um policial. Ele tinha cabelos compridos e usava camisas largas, como qualquer cara nos anos 1970. O que eu sabia é que ele era advogado.
Não socializávamos com outros policiais, em casa ouvíamos música ‘proibida’ como (Joan Manuel) Serrat… Se você visse meu pai, não diria ‘olha, um policial’. Na minha casa, nunca vimos um uniforme. Nunca.
Quando ele nos contou tudo, eu o confrontei. E disse: ‘Não importa se eles fizeram algo ou não. Você não pode sequestrá-los e torturá-los! Não pode matar porque são, segundo você, subversivos! É simples, ninguém pode fazer isso, e muito menos o Estado poderia fazer’.
Eu tive essa conversa com ele muitas vezes. ‘Eles eram terroristas’, repetia ele. E daí? Digamos que fossem: você precisa agir dentro da lei. ‘Você não entende, a ameaça comunista estava chegando’, ele me repreendia. ‘Não importa, pai. Não é razão para matar, torturar, estuprar e sequestrar crianças. De maneira nenhuma’.
Dez anos depois de descobrir o segredo da família, Paula cortou relações com o pai.
“Família é família… Então, eu tive de continuar convivendo com ele, depois fiquei sem vê-lo por um tempo porque estava com muita raiva. E era assim, idas e vindas, em parte porque minha mãe insistia: ‘É seu pai, como você não vai vê-lo?’ Mas quando minha mãe morreu, me senti mais livre e decidi dar um ponto final. Cortei relações com ele. E isso foi há 15 anos.
Não havia mais volta. Ele é uma pessoa horrível, e eu não quero alguém assim na minha vida. Ele sempre repetiu para mim que havia feito o que precisava ser feito, que agiu corretamente, que os crimes foram necessários. Ah, e ele não chamava de crimes, é claro. Ele chamava de ‘ações’.
Então, a certa altura, já não me importava mais se ele havia sido condenado ou não, eu sabia o que ele tinha feito porque ele se vangloria disso. Ele fez parte deste mecanismo de violência que defende até hoje.
Eu não tenho boas lembranças, de qualquer maneira. Faço terapia há 15 anos e voltamos com frequência a esse tema: como é possível que não tenha nenhuma lembrança? Sei que há fotos em que somos uma família feliz, mas não tenho esse registro.
Se eu tiver de pensar em uma recordação boa… Deixa eu pensar… Acho que tenho uma… Poderia dizer que meu pai desenhava muito bem. Uma vez, ele desenhou uma Cinderela muito linda. Ele era um bom desenhista.
De resto, me dava medo. Ele tinha uma aura assustadora, digamos. Ele sabia como botar medo. Há um tempo atrás, me encontrei com amigos de infância, estávamos lembrando daquela época e um dos meus amigos me confessou: ‘Seu pai era muito assustador’. E eu pensei: ‘Sim, eu também tinha medo dele’.
Não era violento, no sentido de que não nos submetia à violência física. Mas era um jogo psicológico.”
Fonte: Aventuras na história
Créditos: Aventuras na história