Quase todo dia, a gerente financeira Marina* revive em pensamento os sete anos de violência sexual –o pior tipo dela, a infantil –que sofreu do melhor amigo dos pais. Os traumas da agressão são imensuráveis. Ela tem ataques de pânico, não consegue confiar plenamente no namorado e nem mesmo receber homens em casa. Marina, que tem 25 anos, sofre ainda mais porque sua mãe, além de não acreditar nos estupros, ainda hoje é amiga do violador.
“Esse trauma moldou meu relacionamento. Tento confiar no meu namorado, mas qualquer coisa já me deixa com o pé atrás”. Marina foi abusada pelo homem a quem chamava de “pai” dos oito aos 16 anos. Quando teve coragem de contar para a mãe, ouviu que “talvez você tenha entendido errado”. Neste maio, mês de combate ao abuso sexual infantil, Marina teve a coragem de contar sua história para a Universa.
“Ele era o melhor amigo da minha família e nós morávamos no mesmo prédio. Eu vivia na casa dele porque brincava com suas duas filhas. Às vezes, eu o chamava de ‘pai’. Queria que ele fosse meu pai porque sempre levava as filhas para passear, brincava com elas, enquanto o meu pai trabalhava muito. Viajávamos juntos, principalmente para a praia, e foi no mar que fui abusada por ele pela primeira vez.
Eu tinha nove anos. Quando ondas fortes batiam na gente, ele colocava minha mão em seu pênis e pedia que eu me segurasse nele. Como eu tenho um irmão mais velho, cresci ouvindo que o ‘pipi’ não devia ser tocado. Sabia que aquilo estava errado, mas era meu ‘pai’, né? Não poderia ser algo ruim.
Os abusos na praia aconteceram várias vezes, por anos; meu pai tem casa no litoral paulista e as duas famílias iam juntas. Eu não tinha coragem de falar com as minhas amigas sobre isso, nem com a minha família. Coincidentemente, meus pais se separaram na mesma época em que esse homem se separou da mulher. Como ele não tinha dinheiro, foi morar com meu pai.
Aos 15 anos, fui para um karaokê com a minha mãe e alguns amigos dela. Ele estava lá. Bebi dois copos de cerveja, comecei a ficar com sono e pedi que minha mãe me levasse para casa. Na hora em que nos despedimos, ele insistiu que ela o deixasse me levar. Como ela não queria ir embora, deixou.
No carro, comecei a bocejar, e ele sugeriu que eu reclinasse o banco e dormisse até chegar em casa. No meio do caminho, acordei e ele estava com a mão no meio das minhas pernas, me acariciando. Tirei a mão dele, assustada, e perguntei o que estava acontecendo. Ele pediu desculpa e insistiu que eu não contasse aos meus pais. Só dizia: ‘Foi sem querer, me perdoa, por favor’. Fiquei apavorada.
Não contei nada pra ninguém. Eu me sentia culpada por ter bebido e ‘permitido’ que isso acontecesse. Meu pai se casou de novo e, por isso, esse homem teve de se mudar. Foi um alívio. Perdemos contato e eu achava que o pesadelo tinha terminado.
Fui morar com meu pai –a relação com a minha mãe não estava boa– e esse homem o visitava com frequência. Quando dormia em casa, meu pai pedia que eu dormisse no quarto da minha irmãzinha para que ele ficasse no meu. Ele dizia que não se importaria em dormir no quarto dela, mesmo que ela acordasse à noite chorando –minha irmã tinha um ano na época. Eu não deixava. Na minha cabeça, só passava: ‘Não se atreva a encostar nela’.
Aos 16 anos, fui a uma balada com a minha prima, que tinha 23. Lá, encontramos meu tio e esse homem. Tentei fingir que estava tudo bem e acreditar que ele não tentaria mais nada comigo. Uma hora, me perdi da minha prima e ele me agarrou. Segurou meu braço com força, puxou meu cabelo e tentou me beijar. Eu o empurrei e gritei: ‘Desaparece da minha vida, eu odeio você!’.
Ele fugiu. Fiquei em prantos. Decidi que contaria para a minha mãe. A chamei para conversar e, chorando de soluçar, contei sobre todas as vezes que ele abusou de mim. Ela só disse: ‘Filha, ele não quis fazer isso. Você deve ter entendido errado’. Mudou de assunto e nunca mais falamos sobre isso. Ainda hoje, eles saem juntos, continuam amigos.
Então, decidi contar para a minha madrasta por medo do que poderia acontecer à minha irmã. Ela, sim, me deu ouvidos e perguntou: ‘Você conta para o seu pai ou eu conto?’. Fiquei com medo da reação dele, de que fosse similar à da minha mãe, mas não foi. À medida que eu contava, os olhos dele enchiam de lágrimas e ele apertava os dedos contra a palma da mão. Eu via raiva nos olhos do meu pai. Ele pediu que minha madrasta mandasse aquele homem que buscar as coisas dele em casa quando meu pai não estivesse lá. ‘Se eu o vir, vou espancá-lo’, ele disse.
Não denunciei porque não tinha provas. Só queria esquecer essa história. Há quatro anos, me mudei para o interior de São Paulo para morar com meus avós. Queria fugir dele. Hoje, moro na Irlanda em intercâmbio e tenho um namorado. O meu comportamento com ele reflete todos os meus traumas.
Não consigo confiar em homem, nem mesmo em pessoas que vêm em casa instalar alguma coisa. Se eu estiver sozinha, travo e nem abrir a porta eu consigo. Se, no ônibus, eu ficar rodeada de homens, tenho crises de pânico. E eu sei que foi o homem a quem chamei de pai que fez isso comigo. Passei anos sonhando com ele todas as noites. Agora, não sonho mais. Ainda assim, quase todo dia lembro dos abusos. Estou me recuperando e espero que, logo, isso se torne apenas uma lembrança como qualquer outra.”
*O nome foi trocado para preservar a identidade da entrevistada
Fonte: UOL
Créditos: UOL