Ausência de negros no comando do projeto e escolha de José Padilha para dirigi-lo despertam debate que envolve política, representatividade e instrumentalização de símbolos
Foram anunciadas na sexta-feira (6) duas obras audiovisuais em torno de Marielle Franco, vereadora negra do Rio de Janeiro, assassinada a tiros no dia 14 de março de 2018, junto do motorista Anderson Gomes.
A primeira delas, “Marielle – O documentário”, é uma produção da Globo que terá o primeiro episódio exibido no dia 12 de março na TV aberta, antes de ser disponibilizada no serviço de streaming Globoplay. A segunda é uma série ficcional ainda em pré-produção prevista para 2021.
Os planos são de uma série em pelo menos duas temporadas: a primeira apresentará a biografia e atuação política de Marielle, e a segunda tratará do crime e investigações posteriores.
Foram escalados nomes como José Padilha (“Tropa de elite 1 e 2”, 2007 e 2010) na direção, George Moura (“Linha de passe”, 2008) no roteiro e Antonia Pellegrino (“Tim Maia”, 2014) na produção.
A seleção da equipe foi questionada pelo fato de os três serem brancos. Houve críticas também à escolha de José Padilha, que na série “O mecanismo” exaltou a Operação Lava Jato e o ex-juiz Sergio Moro, hoje ministro do presidente Jair Bolsonaro.
O debate ficou mais acalorado depois que a produtora Antonia Pellegrino concedeu entrevista ao UOL defendendo as escolhas. Pellegrino é editora do coletivo e blog feminista Agora É Que São Elas. É também casada com o deputado federal Marcelo Freixo (PSOL-RJ).
A escolha de José Padilha como diretor
Quando anunciou José Padilha como diretor do projeto, Pellegrino afirmou que, embora os dois discordassem em muitas coisas, eles concordavam que “trabalhar na diferença, além de saudável, é necessário e estimulante”.
Afirmou que continua classificando a série “O mecanismo” como um “panfleto fascista”, mas lembrou que o diretor se arrependeu publicamente em um artigo para o jornal Folha de S.Paulo. “Sou progressista e não punitivista. Não acho que seja um erro suficiente para cancelar uma pessoa”, disse a produtora.
Segundo ela, Padilha já tratou do poder das milícias em “Tropa de elite 2” e alçaria o projeto a uma escala global, visto a entrada que ele tem no exterior. É o que fala também Tony Góes em sua coluna na Folha: “[Padilha] é dono de uma obra consistente e engajada. Para um projeto que sonha em ser exportado para o mundo inteiro, é um nome ‘high profile’, mais do que adequado.”
Para os críticos da escolha, embora reconheçam o trabalho do cineasta, a simbologia política é mais importante. “Fui um dos poucos que defenderam seu ‘Sete dias em Entebbe’ [filme de Padilha de 2018] no Festival de Berlim, mas colocá-lo neste projeto é inaceitável”, diz o crítico de cinema Pablo Villaça.
Há também aqueles que não veem sequer justificativa mercadológica para a escolha. “Leva a crer que José Padilha, na minha opinião, um medíocre diretor de blockbusters que segue a cartilha do mercado — vide o fracasso de público e crítica de sua aventura pelo gênero na refilmagem de ‘Robocop’ — estaria à ‘mesma altura’ dos americanos, em uma falsa simetria equivocada”, escreveu a cineasta negra Sabrina Fidalgo em artigo também para a Folha.
A atriz Maeve Jinkings (“O som ao redor”, 2012) critica a distância entre prática e discurso de Pellegrino: “Vejo seus últimos posts falando da vitória de [Roman] Polanski no César, sobre a cara do cinema mundial (machista e branco), e sua escolha por Padilha é a cara desse mesmo cinema”, em referência ao prêmio de direção conquistado pelo cineasta condenado por estupro.
Alguns, por fim, veem a participação do diretor, que fez da polícia um símbolo de heroísmo, como um ato de violência. “Após ‘Tropa de elite’, as inscrições no Bope aumentaram vertiginosamente. É o filme que mais exaltou o tema ‘bandido bom é bandido morto’, simplificando a discussão da violência urbana a uma questão de polícia”, diz nota de repúdio assinada por mais de 60 profissionais negros do audiovisual, em reação à produção da série de Marielle.
A posição de José Padilha
Em coluna publicada na Folha, o diretor José Padilha afirmou ser vítima de linchamento moral. Disse que não teve tempo para explicações ou direito a respostas. Ele fala que suas críticas aos esquemas do petrolão, mensalão e usina de Belo Monte o aproximaram, na visão de seus críticos, a um defensor da direita. Padilha enumera algumas situações em que lutou ao lado de figuras políticas da esquerda.
Ele disse que, com Eduardo Suplicy (PT-SP) e Luciana Genro (PSOL-RS), pressionou o Congresso por um emenda constitucional para garantir a alimentação como direito fundamental dos brasileiros. Isso depois de ter dirigido um documentário sobre a fome no país. Contribuiu financeiramente para a campanha de Freixo depois da CPI das milícias. E até “Tropa de elite” ganhou o prêmio máximo no Festival de Berlim, quando foi escolhido por Costa-Gravas, ícone da esquerda no cinema.
O diretor lembrou ainda que precisou fugir do país depois de uma tentativa de sequestro por parte de policiais milicianos, depois do sucesso de “Tropa de elite 2”. E disse que ficaria responsável pelo roteiro e direção de apenas um dos episódios da série, já que a ideia era “treinar novos talentos, usando a série como uma espécie de escola”.
A falta de cineastas negros no projeto
O segundo ponto bastante criticado na entrevista concedida pela produtora ao UOL é a justificativa dada à ausência de realizadores negros no projeto. “Se tivesse um Spike Lee [‘Infiltrado na Klan’, 2018], uma Ava DuVernay [‘Selma’, 2014]… mas asseguro que vai ter muitos profissionais negros envolvidos na série”, disse. A equipe completa de roteiristas, por exemplo, ainda será convidada.
No artigo para a Folha, a cineasta negra Sabrina Fidalgo enumerou uma série de diretores brasileiros que venceram prêmios recentemente, como Glenda Nicácio (“Café com canela”, 2017), André Novais de Oliveira (“Temporada”, 2018) e Gabriel Martins (“No coração do mundo”, 2019). “Diego Paulino, diretor e roteirista do curta ‘Negrume’, no curto período de apenas um ano recebeu mais de 40 prêmios por seu filme”, escreve.
A própria Sabrina Fidalgo é tida por Pablo Villaça e outros críticos como aposta do cinema nacional depois do prêmio de direção no Festival de Brasília. “E se houvesse alguma dificuldade para encontrar profissionais negras(os), bastaria entrar em contato com a Associação das(os) Profissionais do Audiovisual Negro (Apan)”, disse o crítico.
Outros profissionais negros explicam que Spike Lee é produto de uma tradição de cinema negro americano, vinculado a lutas pregressas por direitos. “Referir-se a ‘negros únicos’ é também um modo de naturalização do racismo na medida em que passa a impressão de que, em regra, brancos estão ‘mais bem preparados’ e os ‘negros talentosos’ são exceção”, disse o doutor em filosofia e direito Silvio Almeida.
Para Almeida, esse episódio expressa bem o conceito de racismo estrutural, que é quando o racismo está tão cristalizado em uma sociedade que ele é normalizado. Por exemplo, o fato de poucas empresas terem cargos de chefia negros ou indígenas.
“Ao tomar consciência da dimensão estrutural do racismo, a responsabilidade dos indivíduos e das instituições aumenta e não diminui. Agora, cada um vai ter que pensar qual o seu papel na reprodução de uma sociedade racista”, afirmou.
Outros criticam o próprio fato de o projeto ser encabeçado por três brancos. “Está dizendo indiretamente: não se preocupem porque eu vou contratar pessoas negras para ‘contribuírem’, como se tratasse de ‘contribuição’ a elaboração de narrativas negras”, publicou a atriz negra Grace Passô em seu perfil no Facebook.
O fato de o projeto ser encabeçado por três brancos é pior ainda, segundo a colunista e ativista negra Stephanie Ribeiro, se for considerado um dos trabalhos de maior sucesso de Pellegrino: “Sexo e as negas” (2014), da qual ela foi roteirista. “Essa série foi alvo de críticas nacionais e internacionais de mulheres negras por seu conteúdo racista, problemático e sexista.”
Mas há também quem veja a equipe selecionada como inevitável para um projeto financiado pela Globo. “George Moura é prata da casa. É natural que a empresa queira um contratado seu na chefia da equipe de roteiristas. Moura também é, indiscutivelmente, um dos melhores profissionais do ramo no Brasil”, escreveu o jornalista Tony Góes, que faz uma ressalva para a falta de oportunidades para profissionais negros.
A própria Pellegrino era amiga pessoal de Marielle e foi uma das primeiras a chegar à cena do crime. Segundo o crítico Pablo Villaça, “se ela tem condições, influência e poder para viabilizar o projeto, atacá-la por fazê-lo é miopia”.
A instrumentalização da figura de Marielle
A figura de Marielle desperta também um debate que diz respeito ao uso que diversos grupos têm feito de Marielle para alavancar suas carreiras. Stephanie Ribeiro elenca os casos da Mangueira no Carnaval carioca, que se “esqueceu” de convidar a filha da vereadora para o desfile, e do estilista da São Paulo Fashion Week que, sem autorização da família de Marielle, criou um tênis com a figura da vereadora com um alvo na testa e uma camisa com a imagem dela e tiros bordados.
No caso das duas séries da Globo, os parentes foram contatados. Anielle Franco, irmã de Marielle, disse que as ideias já chegaram prontas e aconteceriam independentemente do aval dos familiares. “Não temos controle de quem / quando / onde / como algo será falado e produzido sobre Marielle”, afirmou. Por esse motivo, a família criou um perfil no Instagram como “espaço de referência para que nos procurem para falarem com respeito e cuidado com a memória dela”.
Do jeito que está o projeto, a cineasta Sabrina Fidalgo diz que é como se Marielle fosse executada pela segunda vez. “Existe um valor simbólico e financeiro em contar essa história”. Já na nota de repúdio dos profissionais negros, “ficcionalizar em torno de um crime que ainda está sendo investigado também é uma violência e uma naturalização do crime violento e dos 13 tiros disparados contra o carro de Marielle”
Para Tony Góes, o debate pela presença de negros no mercado é urgente, mas “esse joguinho de acusações e cancelamentos na bolha progressista é contraproducente, pois só tem um vencedor: a extrema direita”.
Já para o crítico Pablo Villaça, o problema é o tom das críticas. “Em vez de apontar estas questões, abrir o diálogo e dizer, a discussão já parte para o insulto. E como todo animal acuado, ele ataca de volta.”
Fonte: Nexo
Créditos: Nexo