Mais médicos, menos xenofobia, mais solidariedade

Toni Reis

Ao se pronunciar sobre uma profissão da qual você já precisou, está precisando ou vai precisar, é preciso ter cuidado e habilidade. Assim, organizações como os conselhos de medicina estão no direito de defender a profissão e também lutar pela garantia da infraestrutura necessária para o adequado funcionamento dos serviços de saúde pública, além dos R$ 15 bilhões que deverão ser investidos nesta área pelo Ministério da Saúde até 2014. Por outro lado, não se pode resvalar no preconceito, na discriminação, na xenofobia e no corporativismo.

Eu, como uma pessoa que sempre defendeu o não preconceito e a não discriminação, fiquei deveras triste com a hostilidade com que foram recebidos os médicos cubanos no aeroporto do Fortaleza na semana passada, sendo xingados, maltratados e apelidados de “escravos”. Até ouvi e vi nas redes sociais pessoas falando que os/as médicos/as de Cuba têm mais cara de empregada doméstica e taxista. Infelizmente, não foi um fato isolado. Isso é discriminação, além de desrespeito a essas profissões tão necessárias. Nesse sentido, temos que discutir a situação.

Os fatos apontam para a urgente necessidade de agir, pelo bem da saúde do povo. Como disse Hipócrates: “Para os males extremos, só são eficazes os remédios intensos”. O Brasil hoje tem um déficit de 15.460 médicos na atenção básica à saúde. Não há médicos nas áreas mais pobres das regiões Norte e Nordeste, e este cenário se repete em cidades do interior, em outras regiões, e também nas periferias das grandes cidades. Cerca de 700 municípios sequer têm um médico que resida neles.

Numa tentativa de suprir esse déficit, o governo federal lançou o programa Mais Médicos para o Brasil, priorizando médicos brasileiros, seguidos de brasileiros graduados no exterior e por, último, de médicos estrangeiros. Apesar do número grande de médicos brasileiros que inicialmente se candidataram para integrar o programa, no final das contas, só 938 se habilitaram, junto com 194 brasileiros formados em outros países.

Ou seja, o número de habilitados ficou muito aquém da necessidade, resultando no recurso à terceira alternativa: contar com apoio de médicos de outros países que atendam os critérios de ter conhecimento da língua portuguesa e ser proveniente de um país que tenham mais médicos por mil habitantes que o Brasil (1,79), segundo preconiza a Organização Mundial da Saúde.

Só quem está  doente nos confins do nosso Brasil  sabe o que significa ter acesso a um médico quando dele se precisa. A pessoa doente quer  médico, seja paulistano, marciano ou  cubano. O importante é diagnosticar, medicar e fazer cumprir a Constituição Federal, que determina que a saúde é direito de todos e dever do Estado.

Com o programa Mais Médicos, o Estado está procurando cumprir sua obrigação perante os cidadãos. Este programa foi aprovado e elogiado pela Organização Pan-Americana da Saúde, que também é sua parceira.

O Sistema Único da Saúde (SUS) é exemplo para o mundo pela sua forma democrática de funcionamento. O SUS tem instâncias garantidas de controle social: os conselhos e as conferências de saúde. Quem está insatisfeito ou quer melhorar a saúde pública, seja um usuário, um trabalhador, um prestador ou até um gestor do serviço, deveria exercer seu direito e dever de cidadão e participar dessas instâncias como meio legítimo, conquistado a duras penas, de incidir sobre as políticas públicas de saúde.

O boicote, o corporativismo, o preconceito, a discriminação e a xenofobia demonstrados por certos integrantes da classe médica em relação aos médicos estrangeiros são táticas e atitudes nada democráticas que não condizem com o espírito do juramento hipocrático, que vale lembrar:

“Prometo que, ao exercer a arte de curar, mostrar-me-ei sempre fiel aos preceitos da honestidade, da caridade e da ciência, penetrando no interior dos lares, meus olhos serão cegos, minha língua calará os segredos que me forem revelados, o que terei como preceito de honra…” (Hipócrates. 450 a.c.).

Este debate tem que envolver a sociedade toda, não só médicos e governo.

Sigamos em frente na luta por um Sistema Único de Saúde que atenda todos e todas, de forma universal, equânime, integral e solidária.