Lembranças de uma memória perdida

Flávio Lúcio

Parafraseando um decano da imprensa paraibana, Tião Lucena, porque hoje é domingo não trataremos de política. Hoje vou falar do mundo e de mim mesmo.

Lembro-me da tristeza que causava, a mim e, especialmente, a minha mãe, as vezes que prostrava-me diante da minha avó e era recebido como um estranho, com aquele olhar que buscava, nos caminhos mais recônditos de seu passado, aquele rosto que deveria ser familiar, e não era. E do seu doloroso constrangimento, depois de avisada, por não conseguir reconhecer o neto, o que também acontecia com os filhos.

Minha avó sofria do mal de Alzheimer e conviveu com ele por vários anos. Acompanhei a progressiva perda de movimentos de Dona Emerentina, até que caminhar, e mesmo comer, tornaram-se grandes sacrifícios, para ela e para os que dela cuidavam. Cada passo era dado numa arrastado de quem aprende a andar, em passos que não poder ser mais desacompanhados. A fala se torna tão lenta quanto o raciocínio, por conta de uma língua que perde também sua função motora.

No seu estágio avançado, o mal de Alzheimer permite uma rica discussão sobre o que é ser e estar vivo. Ao olhar para minha avó cada vez mais inerte e desmemoriada, era inevitável não pensar que a sua vida estava se tornando apenas latência, como a vida das plantas. Como é viver com uma memória que vai nos abandonando, primeiro, no registro dos fatos mais recentes, até que o passado se torne um vazio translúcido?

A memória nos define. É com ela que construímos nossa identidade. Sem ela, não temos consciência de quem somos e a que mundo pertencemos. A perda de memória por conta do Alzheimer se afigura a um livro que se despedaça ao vento. A cada página que se vai arrancada, um evento ou um personagem desaparece para sempre. É um fenômeno inverso ao que alguns filósofos empiricistas acreditavam ser a mente: uma folha em branco que a experiência vai preenchendo. Com a Alzheimer, as palavras vão sumindo até que a mente volte a ser uma folha em branco. E morremos vivos sem reconhecer a nós mesmos.

Esse triste trajeto da minha avó depois do Alzheimer teve fim numa noite em que ela adormeceu e não mais acordou, num último suspiro de tristeza e alívio.

Cura para o Alzheimer

Esses acontecimentos povoaram minhas lembranças durante essa primeira semana do ano quando li a notícia de que cientistas russos podem ter descoberto a cura para o mal de Alzheimer, além do mal de Parkinson e derrame, com um medicamento que impede as células nervosas de morrerem. O mal de Alzheimer era uma das poucas doenças que a Medicina não conseguira desenvolver um tratamento eficaz para combatê-la. Depois de diagnosticado, como aconteceu com minha avó, o seu inapelável desenvolvimento conduzia o paciente, mais cedo ou mais tarde, à morte.

Diante de tantas tragédias com as quais nos acostumamos a conviver, em que o desenvolvimento da ciência é decisivo para que elas aconteçam e sejam transformadas em verdadeiras carnificinas, como as guerras cada vez mais tecnológicas, notícias como a descoberta para a cura de uma doença tão degradante para o corpo e para mente, mostram que a ciência tem muito a contribuir com a humanidade. São cientistas que trabalham diuturnamente metidos em seus laboratórios para tornar a vida mais longa. É por conta do esforço de pesquisadores que doenças que eram antes verdadeiras sentenças de morte, como o câncer e a AIDS, já é possível conviver com elas e, no caso do câncer, curar-se. A cura para a AIDS parece também próxima.

Eu penso na humanidade, mas eu penso em mim mesmo também, numa preocupação em evitar que aconteça comigo o que aconteceu a Dona Emerentina. Como o mal de Alzheimer tem uma pesada carga genética que se transfere de geração em geração, em sempre sofri me vendo naquela rotina de dependência, deixando de ser eu mesmo, desesperançado de envelhecer com saúde física e mental. Com 45 anos, a esperança de não ser abatido pelo Alzheimer aliviou meus pensamentos futuros.
Medicina e solidariedade

Se notícias como essa relatada acima aumentam nossa crença no poder da ciência, uma outra, agora do final do ano passado, dão uma ideia de quanto o individualismo, a falta de solidariedade e a irresponsabilidade ainda permeiam nosso mundo, especialmente no Brasil. Trata-se do que aconteceu no Rio de Janeiro, quando um médico abandonou seu plantão para curtir a ceia de Natal e deixou de atender a uma criança, que por sete horas permaneceu com uma bala perdida alojada no crânio. A criança acabou morrendo e os pais vão responsabilizar o médico, além do Estado, por essa morte que poderia ter sido evitada.

Esse é um assunto que deve ser tratado com todo cuidado. Nesse caso, não se trata de erro médico, acusação que aterroriza a categoria médica por conta da responsabilização por morte ou sequelas graves depois de cirurgias. Diferentemente de outras profissões, na medicina o erro traz consigo consequências graves. Por isso, a formação do médico deve ser uma preocupação de Estado. E seu compromisso com o juramento de Hipócrates deve ser medido de maneira permanente. Médicos descompromissados com os valores da medicina não merecem permanecer nela.