Responsáveis por coibir a lavagem de dinheiro, funcionários da Receita Federal investigados na Operação Armadeira –deflagrada ontem pela PF (Polícia Federal), pelo MPF (Ministério Público Federal) e pela Corregedoria da Receita no Rio de Janeiro– usaram seus conhecimentos técnicos para burlar a lei. Segundo os procuradores da Lava Jato no Rio, o grupo montou um sofisticado esquema para ocultar propina. Além das formas tradicionais, como o uso de laranjas para comprar imóveis e veículos, um dos investigados utilizou meios inusitados: com dinheiro vivo, comprou uma bicicleta de luxo e passagens aéreas para o exterior.
Alvo de mandado de prisão temporária, Alexandre Ferrari Araújo é auditor fiscal da Receita. Segundo as investigações, ele foi o responsável por um procedimento fiscal contra o empresário Ricardo Siqueira Rodrigues —que negociava delação premiada com a Lava Jato no Rio e denunciou ter sido alvo de extorsão por parte de funcionários do Fisco, com base nas denúncias feitas pela operação. Foi esse relato que suscitou o início das investigações.
As investigações apontaram que Araújo teria usado parte dos recursos obtidos com base no esquema criminoso para comprar uma bicicleta elétrica de luxo da marca suíça Stromer. A lista de especificações técnicas é longa: o modelo ST5, adquirido pelo alvo da operação, tem motor de 850 watts com autonomia de 180 km e capacidade de chegar a 45 km por hora. Ainda possui uma espécie de computador de bordo com tela LCD touchscreen, onde é possível acompanhar a velocidade. O sistema também oferece conexão bluetooth com celulares e outros equipamentos.
De acordo com e-mails interceptados com autorização judicial, o auditor fiscal pagou US$ 9.999 pela bicicleta —ou aproximadamente R$ 41,5 mil pela cotação de hoje.
Segundo o MPF, todos esses recursos fazem com que a bicicleta seja apelidada de “Tesla das bicicletas”, em referência à montadora do bilionário Elon Musk, especializada em carros esportivos movidos por motores elétricos.
Passagens em 1ª classe com dinheiro vivo
Além da bicicleta de luxo, Araújo teria usado dinheiro vivo para custear dezenas de viagens ao exterior. Segundo levantamento juntado aos autos da investigação, ele deixou o Brasil 20 vezes entre 14 de janeiro de 2015 e 15 de julho de 2018 —ou seja, uma ida para outros países a cada dois meses.
“Os dados constantes nos registros apontam, ainda, que o representado aparentemente se senta nas primeiras fileiras do avião, indicando a aquisição de passagens de 1ª classe ou classe executiva”, diz trecho do pedido de prisão.
Em 25 de fevereiro de 2017, ele pagou R$ 13.287,35 em espécie para ir a Dubai, com retorno em 4 de março, segundo as investigações.
Araújo visitou uma série de outros destinos no exterior. “Oportuno esclarecer que também foram identificados bilhetes aéreos emitidos pelas companhias AMERICAN AIRLINES, IBERIA LÍNEAS AÉREAS e EMIRATES para destinos variados como Miami, Nova Iorque, Los Angeles, Londres, Barcelona e Sidney”, afirma o MPF.
A viagem para Sidney é outro dos casos em que foi constatado o pagamento de passagens com dinheiro vivo. O investigado gastou R$ 20.556,92 para viajar em uma aeronave da Emirates em 18 de janeiro.
Lavagem cruzada
Outros suspeitos utilizavam empresas e pessoas próximas como laranjas para ocultar patrimônio. Em alguns casos mais sofisticados, um dos auditores usava familiares e pessoas jurídicas ligadas a outros colegas para lavar dinheiro através de imóveis. É o que os procuradores da Lava Jato definiram como lavagem cruzada.
O objetivo da manobra era distanciar ainda mais o registro formal dos bens desses funcionários públicos, já que uma investigação que se debruçasse apenas sobre algum deles não encontraria relação de parentesco com os proprietários formais desses bens.
Segundo o MPF, um dos exemplos dessa prática é um imóvel na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio, cujo proprietário real seria o auditor fiscal Marco Aurélio Canal, supervisor de Programação e Fiscalização da 7ª Região Fiscal, que engloba Rio de Janeiro e Espírito Santo.
Embora pertencesse a Canal, apontado como chefe da organização criminosa, formalmente a propriedade esteve vinculada a pessoas ligadas a dois outros auditores.
O imóvel pertencia formalmente a um cunhado do fiscal Fábio dos Santos Cury. Em dezembro de 2016, foi transferido para a empresa BMagts Administradora de Imóveis Eireli, cuja proprietária é Sueli Gentil, mãe do servidor da Receita Daniel Gentil —Cury, Sueli e Daniel foram alvos de mandados de prisão hoje.
O intrincado esquema montado ocultava o verdadeiro proprietário do apartamento, uma cobertura na avenida Lucio Costa, na praia da Barra da Tijuca. Segundo sites de vendas de imóveis, um apartamento no condomínio não sai por menos que R$ 1,4 milhões.
Diversos elementos mostram que Canal e seus familiares viviam no local. Notas fiscais no nome da mulher do supervisor da Receita tinham a cobertura como endereço de entrega. Da mesma forma, registros de moradores e veículos do condomínio tinham Canal e seus familiares como os responsáveis pelo imóvel.
Operação mostrou esquema de extorsão
O MPF, PF e a Corregedoria da Receita Federal deflagraram na manhã de ontem a Operação Armadeira, com o objetivo de desarticular uma organização criminosa formada por servidores da Receita. Auditores fiscais, analistas tributários da Receita Federal e pessoas próximas a eles são investigados pelos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro.
Segundo a PF, ao menos 11 pessoas foram presas. Dois investigados estão no exterior, e um terceiro é procurado. Mais de R$ 1 milhão em espécie foram apreendidos em endereços ligados aos suspeitos no Rio.
As investigações se iniciaram em novembro de 2018 com o depoimento de um dos réus da Operação Rizoma. Ricardo Siqueira Rodrigues, que negociava delação premiada, denunciou ter sido alvo de extorsão por parte dos fiscais. O contato teria sido feito através de seu contador, por um auditor.
A partir daí, a Lava Jato, com autorização da Justiça, fez uma ação controlada —quando as autoridades retardam a ação contra uma organização criminosa para flagrar o grupo. Rodrigues foi orientado a seguir negociando o pagamento de propina até fazê-lo em uma conta bancária aberta pela quadrilha em um banco em Portugal.
O MPF recolheu provas com o uso de escutas ambientais, filmagens em reuniões e obtenção de comprovantes bancários do pagamento de propina.
Uma nova delação premiada permitiu que as investigações chegassem ao auditor fiscal Marco Aurélio Canal, que cobrou R$ 4 milhões para livrar a Fetranspor (Federação das Empresas de Transporte do Rio de Janeiro) de um auto de infração.
Outro lado
O advogado Fernando Martins, responsável pela defesa de Marco Aurelio Canal, declarou, por meio de nota, “que se trata de mais uma prisão ilegal praticada no âmbito da denominada operação Lava Jato, eis que de viés exclusivamente político, atribuindo a Marco Canal responsabilidades e condutas estranhas à sua atribuição funcional e pautada exclusivamente em supostas informações obtidas através de ‘ouvi dizer’ de delatores”.
As defesas de Fábio dos Santos Cury, Sueli Gentil e Daniel Gentil também não foram localizadas.
A Federação reafirma seu compromisso com uma nova gestão que prioriza a transparência de seus atos, a valorização dos controles internos e o respeito às normas que regulam o setor.
Por meio de nota, a Fetranspor destacou que as investigações se referem a fatos supostamente ocorridos antes da posse da nova diretoria.
“Desde setembro de 2017, a entidade é presidida por um executivo profissional, selecionado no mercado e sem qualquer ligação anterior com a área de transporte público de passageiros (…) A Federação destaca mais uma vez o seu comprometimento para colaborar com as investigações em andamento e cumprir as determinações judiciais, permanecendo à disposição das autoridades para os esclarecimentos necessários”.
Fonte: UOL
Créditos: UOL