Era como falar do carro alegórico sem mostrar o samba-enredo. No Carnaval de 2017, a impopularidade de Michel Temer, então com 10% de aprovação, segundo o Datafolha, ganhou fala e alegoria nas manifestações de foliões Brasil afora.
Os protestos pipocavam nas ruas, nas redes e no noticiário – mas não nos veículos da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), responsável pela gestão da Agência Brasil, da TV Brasil e de emissoras de rádio, e cuja direção vetava a divulgação e até mesmo menções a faixas e cartazes onde se liam “Fora Temer” e outras críticas ao governo e suas reformas.
A orientação levou o Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal, onde atua boa parte dos servidores da EBC, a questionar a orientação. “A posição da direção da empresa de veto e o direcionamento contra protestos questionadores e satíricos da sociedade, que fazem parte da cultura do carnaval, de qualquer matriz ideológica, (…) é algo que vai de encontro ao que a Comunicação Pública deve ser.”
A nota é apenas uma de uma série publicada pelo sindicato desde o início da gestão de Laerte Rimoli, escolhido a dedo pelo governo Temer após chefiar a comunicação da campanha de Aécio Neves à presidência em 2014 e a Secretaria de Comunicação Social da Câmara dos Deputados durante a gestão de Eduardo Cunha.
Segundo o sindicato, além de ter promovido a censura e o desmonte dos veículos públicos de comunicação com um “ataque frontal à lei que estabeleceu a comunicação pública federal”, a atual direção acelerou a imposição de uma linha editorial governista dentro da EBC.
Programas sob encomenda
A entidade afirma que matérias são diariamente modificadas e programas são feitos sob encomenda dentro da Agência Brasil, TV Brasil, Portal EBC, Rádio Nacional e Rádio MEC com o objetivo de tornar o conteúdo o mais favorável possível ao governo federal, sem espaço para o contraditório. Segundo os funcionários, propostas de reportagem sobre temas que desagradam o Planalto são excluídas já nas reuniões de pauta. “Há dezenas de casos de censura explícita, com membros da diretoria excluindo posições críticas ao governo minutos antes da publicação de reportagens”, diz uma das notas.
Herdeira da estrutura da Radiobrás, a EBC, fundada em 2007 como uma instituição “pública, inclusiva, plural e cidadã”, tem como missão “criar e difundir conteúdos que contribuam para a formação crítica das pessoas”.
Hoje, afirma o coordenador do Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal (DF), Gésio Passos, há uma luta diária, por parte dos trabalhadores, contra o assédio na empresa, sobretudo na Agência Brasil. “Quem assumiu a gestão não tem nenhum constrangimento em assediar os funcionários”, diz.
Segundo ele, a EBC hoje está “sitiada”. “Sempre fomos críticos às gestões anteriores, mas é muito simbólico que uma das primeiras medidas de Temer como presidente tenha sido acabar com o controle social na EBC”, acusa.
Ele se refere à Medida Provisória 744, aprovada em fevereiro no Senado por 47 votos a 13. A MP acabou com o mandato fixo para o presidente da empresa e extinguiu o Conselho Curador, principal ferramenta de participação da sociedade civil na gestão da EBC (ainda que, segundo os funcionários, o órgão estivesse precisando ampliar os espaços de representação, sobretudo para minorias).
Segundo o coletivo Intervozes, os dois mecanismos extintos pela MP eram as principais garantias de autonomia da EBC em relação ao governo federal.
Nas duas últimas semanas, The Intercept Brasil conversou com diversos profissionais dos veículos da EBC e ouviu relatos sobre o clima de tensão, censura e assédio na empresa. Com medo de retaliação, eles só aceitaram falar à reportagem sob condição de anonimato.
“A comunicação pública no Brasil, que lutava para ficar de pé, tomou uma rasteira”, define uma jornalista.
Eles veem nas medidas da atual gestão um interesse em acabar com os veículos de comunicação pública da EBC, mantendo apenas a estrutura estatal, com o único objetivo de divulgar os atos do governo, sem o viés crítico que deveria ser característico.
A tensão chegou ao ápice nos últimos dias com a elaboração, pelo Planalto, de um Programa de Desligamento Voluntário (PDV) para atingir ao menos um quinto dos 2.600 servidores da EBC. Segundo o sindicato, a iniciativa em estudo acontece após a diretoria aumentar os valores pagos aos cargos comissionados, redesenhando a empresa com a criação de gerentes e coordenadores sem empregados subordinados e a substituição de jornalistas, profissionais da atividade-fim da empresa, por assessores.
Outros pontos de tensão foram a troca de setoristas de postos-chave da cobertura política e a transferência de correspondentes no Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Bahia, Pernambuco e Ceará, surpreendidos com portarias da empresa determinando a remoção para o Rio e Brasília. Todos foram selecionados por processo interno e não representavam custos exorbitantes à empresa. Segundo o sindicato, trata-se de perseguição da chefia da Agência Brasil.
A medida foi anunciada após os trabalhadores, com apoio da Comissão de Empregados, assinarem uma nota de repúdio a um gerente-executivo que, em julho, por meio de um grupo de WhatsApp, criticou o correspondente em Porto Alegre, responsável por acompanhar a Lava Jato, por uma suposta falha na cobertura da sentença do juiz Sérgio Moro que, de Curitiba, condenou o ex-presidente Lula em primeira instância. Acusado pelo chefe de “desleixo” e “descuido”, o repórter estava em horário de almoço no momento em que foi divulgada a sentença.
Diretor demitido em São Paulo
Constrangimentos como esse têm sido recorrentes, de acordo com os funcionários. Em março, o diretor de jornalismo de São Paulo foi demitido após a publicação, na Agência Brasil, de matérias sobre o acampamento do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) e críticas do Dieese à reforma da Previdência. A demissão repercutiu apenas na imprensa alternativa.
Em outro episódio, um repórter foi constrangido no ar por um apresentador da Rádio Nacional de Brasília, o ex-deputado Maurício Rabêlo, após noticiar a condenação do deputado Jair Bolsonaro por ofensas à colega Maria do Rosário. “Cuidado com as suas palavras. Quem fala muito dá bom dia a cavalo”, disse o ex-parlamentar, após elogiar o deputado.
Com a pressão e as advertências recorrentes, há casos de trabalhadores com sintomas de transtorno que tiveram de pedir licença médica para tratamento.
Em outra frente, a direção da EBC elaborou um novo Código de Conduta cuja minuta foi apelidada de “Lei da Mordaça” por parte dos funcionários.
O documento atualiza as determinações aprovadas em 2001. A resolução orientava os funcionários, por exemplo, a se apresentar ao trabalho com “vestimentas apropriadas” e a “colaborar em todas as ações do governo relacionadas com campanhas que visem minorar e superar crises nacionais ou setoriais de qualquer natureza”. E proibia ainda empregados e administradores da EBC de “prejudicar deliberadamente a reputação de outros servidores ou de cidadãos que deles dependam” (seja lá o que isso significa).
Novo Código de Conduta
O novo texto veta a manifestação “para o público externo de divergências de opinião de cunho técnico que denote desacordo entre empregados em exercício da EBC”. Proíbe os jornalistas de “exercer atividade profissional ou ligar o seu nome a empreendimentos eticamente condenáveis” (assim, sem qualquer distinção) ou “promover reuniões particulares, dentro ou fora do expediente, no recinto da empresa, sem autorização”. A direção quer proibir ainda “qualquer tipo de propaganda político-partidária ou religiosa nas dependências da EBC”, o que levou ao questionamento sobre como ficaria a atuação sindical ou a defesa da comunicação pública, atividades políticas por natureza.
Para os antigos integrantes do Conselho Curador, tudo é feito sem que os trabalhadores sejam ao menos informados das mudanças que os afetam diretamente. “O clima interno é tão ruim que, só em 2017, já foram mais de 40 pedidos de demissão”, dizem.
Assim que o governo Temer enviou ao Congresso a MP para acabar com o Conselho, o Ministério Público Federal alertou para uma possível fragilização estrutural da EBC, com “a subordinação da empresa às diretrizes do governo e o condicionamento às regras estritas de mercado”, e destacou a abertura da prática da “censura de natureza política, ideológica e artística”.
Dito e feito. Ao longo dos últimos meses, programas foram retirados da grade das emissoras, contratos foram cancelados, conteúdos foram removidos dos portais da empresa, matérias e reportagens produzidas pelos jornalistas deixaram de ser publicadas ou foram descaracterizadas.
O sindicato acusa ainda o governo de reduzir em mais de 40% as verbas de custeio e investimento e cita como exemplo a situação da Rádio Nacional da Amazônia, que está há mais de um mês fora do ar por problemas na transmissão de seu sinal.
Em março, um grupo de jornalistas da Agência Brasil encaminhou aos diretores uma carta questionando os motivos para a retirada da palavra “golpe” das respostas de pessoas entrevistadas e para uma série de outras decisões, como a proibição da veiculação de fotos com a mensagem “Fora Temer” e o silenciamento de críticas a projetos do governo.
Os exemplos de orientações editoriais questionáveis não param por aí. De acordo com uma funcionária, a página principal da Agência Brasil esconde notícias sobre manifestações contrárias ao governo, privilegiando matérias sobre problemas no trânsito decorrentes dos atos.
Na cobertura dos protestos de centrais sindicais contra a reforma da Previdência, jornalistas receberam a orientação, por e-mail, para “evitar discursos políticos e focar nas propostas”. A mesma orientação havia sido dada na cobertura dos atos do Dia da Mulher – mas não vale, segundo os jornalistas, quando a fala é de algum ministro ou aliado.
O ato do Dia da Mulher, aliás, rendeu uma saia-justa na TV Brasil após uma entrevistada dizer “Fora Temer” no ar. A atitude, de acordo com o colunista Mauricio Stycer, do UOL, gerou uma recomendação para jornalistas e produtores checarem o perfil de futuros entrevistados nas redes sociais antes de convidá-los para entrevistas. Ainda segundo o relato, o pedido foi feito oralmente.
A EBC ignorou a Bienal de Arte e Cultura da União Nacional dos Estudantes (UNE), que aconteceu em Fortaleza, em fevereiro. As antigas edições, ausentes da grande mídia, eram pautas tradicionais da empresa até a chegada de Temer ao poder.
Jornalistas relatam ainda que chefes se recusaram a publicar pesquisas de universidades que embasavam críticas a medidas do governo, como a PEC 55. Dizem ainda que denúncias contra ministros não são devidamente contextualizadas e que casos de vaias a políticos governistas são abafados.
Uma profissional conta que problemas técnicos no áudio das reportagens para a rádio se tornaram recorrentes quando a fala é crítica ao governo.
Dois episódios do ano passado também causaram particular estranheza. O primeiro deles foi o silêncio da Agência Brasil durante todo o dia 19 de novembro, quando pipocavam em diversos sites de notícias as denúncias do então ministro da Cultura Marcelo Calero contra o colega Geddel Vieira Lima, braço direito de Temer. A orientação era abordar o tema apenas se Geddel ou o governo se pronunciassem.
Fonte: SRZD