“Jango” e o enigma

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Nonato Guedes

De há muito circula a versão de que o ex-presidente João Goulart foi assassinado, contestando-se o documento oficial expedido pelos militares de que ele teria morrido de ataque cardíaco. Agora, a ministra Maria do Rosário reacende a polêmica, ao declarar numa audiência perante a Comissão Nacional da Verdade, que são muito fortes os indícios apontando para o assassinato de “Jango” em seu exílio, na Argentina, em 1976. Familiares do ex-presidente, até então, alimentavam-se do enredo de que João Goulart fora envenenado, o que é um script mais próximo da suspeita levantada pela ministra Maria do Rosário.

Essa é uma história que precisa ser passada a limpo, definitivamente, elucidada com toda a clareza necessária, porque a conclusão pode abrir caminho para outro mistério, o que envolve a morte do ex-presidente Juscelino Kubitscheck. Sobre JK, é fora de dúvidas que morreu em acidente automobilístico, quando se deslocava de São Paulo para o Rio na companhia do fiel motorista Geraldo, também vitimado. A dúvida é sobre a circunstância do acidente. Teria sido deliberadamente provocado? Se isto porventura aconteceu, a hipótese de premeditação não pode ser descartada. Mais do que “Jango”, Juscelino era temido pelos militares pelo seu carisma, e pretendia ser candidato natural à presidência não fossem os Atos Institucionais que extinguiram partidos, cassaram mandatos, como o dele, e suspenderam eleições diretas até 1985. Não é de estranhar que quisessem cortar suas asas.

Em relação aos indícios da morte de João Goulart, há um amontoado de referências à chamada “Operação Condor”, uma sinistra aliança firmada entre países do Cone Sul, a exemplo do Brasil, para perseguir opositores dos respectivos regimes ditatoriais que estavam em vigor. Mais do que ordenar perseguição, a “Operação Condor” propunha a eliminação física sumária dos ditos opositores dos regimes de força que se instauraram em países convergentes. A advogada criminalista Rosa Cardoso, integrante da Comissão da Verdade, instituída pela presidente Dilma Rousseff para apurar responsabilidades de agentes da repressão em atos criminosos, sustenta o ponto de vista de que os passos de “Jango” eram vigiados ostensivamente pelo consórcio de agentes da repressão, entre os quais figurava como expoente no Brasil o notório Sérgio Paranhos Fleury.

João Goulart entrou na História política brasileira pelas circunstâncias. De índole pacata, vivendo como estancieiro nos Pampas, ele foi eleito vice-presidente de forma solteira na eleição que consagrou o populista professor do Mato Grosso Jânio da Silva Quadros, cuja notoriedade foi conquistada com a promessa de varrer a corrupção no Brasil e com os cacoetes demagógicos que exibia em comícios monumentais. Jânio queria governar com poderes absolutos, espécie de ditador em pleno regime democrático. Tentou curvar o Congresso à sua vontade, não o conseguiu. Escalou emissários para tentar persuadir o então governador do Rio, Carlos Lacerda, a dar-lhe carta branca. Lacerda, em resposta, foi à televisão e denunciou o arremedo de golpe que Jânio ensaiava. Com o fiasco da orquestração, Jânio lançou mão de um expediente teatral: preparou a carta-renúncia. Tinha a expectativa secreta de que ela não fosse levada a sério e que, na verdade, funcionasse para favorecer seu projeto expansionista.

Não foi o que aconteceu. A barulhenta “banda de música” da UDN, regida por alguns dos mais notáveis tribunos políticos, desmascarou a pantomima e aceitou a carta-renúncia sem discuti-la em plenário a pretexto de que se tratava de um ato unilateral sobre o qual não cabia polêmica. Jânio deixou Brasília praguejando contra a solidão do Planalto e ainda pediu ao piloto para sobrevoar praias do Rio de Janeiro no avião que o conduzia a Cumbica, em São Paulo. Caiu em depressão ao constatar que as praias estavam apinhadas de cariocas irreverentes, agradavelmente surpresos com o inesperado feriado que se seguiu ao despejo do outrora inquilino do Palácio do Planalto. Enquanto isso, Jango era alcançado na China pela notícia do vácuo e pela intimação para retornar imediatamente ao Brasil. O resto é o que se conhece. Foi tolhido na tentativa de implantar reformas, deixou de impor sua autoridade junto a sindicalistas que estavam mais para a anarquia do que para a democracia. De Minas, o general Olympio Mourão Filho cruzava a fronteira, com tropas, para desembarcar no Rio. O golpe foi consumado. Mas, quem garante que a linha dura não queria dar o tiro de misericórdia em Goulart, o último símbolo daquela época de liberdades? Faz sentido a tese do assassinato. E mais imperioso é o desvendamento do episódio, com a identificação dos culpados.