PRECONCEITO E ATAQUES

ISLAMOFOBIA: 'O que oprime muçulmanas no Brasil não é o lenço', diz pesquisadora

A antropóloga Francirosy Campos, que estuda o tema há mais de 20 anos, diz que preconceito e ataques contra fiéis do Islã no Brasil, especialmente contra mulheres, aumentaram após as notícias do Talibã tomando poder no Afeganistão

A tomada do poder pelo Talibã no Afeganistão teve consequências não só para as mulheres que vivem sob o regime, mas também para muçulmanas no Brasil. Isso porque os episódios de islamofobia — preconceito e ataques contra muçulmanos — aumentaram após as notícias sobre as ações do Talibã. O crescimento foi registrado pela pesquisadora Francirosy Campos, que estuda o assunto há mais de 20 anos.

“Tudo o que alguém faz de errado em nome da religião se volta contra a comunidade muçulmana, especialmente contra as mulheres”, diz Campos, que é professora da Universidade de São Paulo, antropóloga com pós-doutorado na Universidade de Oxford, feminista e muçulmana.

A pesquisadora explica que movimentos políticos com teor religioso, como o Talibã, não são a mesma coisa que a religião do Islã. E que há muita diversidade e muitas diferenças no mundo muçulmano. A opressão das mulheres em alguns lugares, diz, não é resultado da religião, mas do “contexto cultural e político de cada lugar”.

“O patriarcado, o machismo estão em todas as sociedades. Os homens são machistas dentro do Islã, fora do Islã, com religião, sem religião. Mas isso não impede que as mulheres construam suas agências, suas formas de luta e suas formas de resistência”, afirma.

Leia a seguir trechos da entrevista de Campos à BBC News Brasil.

BBC News Brasil – Que sentimento vem, para uma pessoa muçulmana, ao ver um grupo fundamentalista como o Talibã oprimir pessoas em nome da religião?

Francirosy Campos – Primeiro é um sentimento de impotência, de tristeza. A gente tem uma religião que nos ensinou a beleza da compreensão, do diálogo, dos valores humanos. Porque se a gente for olhar para os objetivos da Sharia (lei islâmica), eles são a preservação da vida, da consciência, da propriedade, da religião. E, quando você vê situações como essa, essas pessoas não estão nem chegando a 0,01% do objetivo da Sharia. Não adianta rezar dez vezes ao dia, mais do que está prescrito, sendo que você maltrata sua mãe, maltrata um animal, não é um pessoas honesta… Sua oração não vale nada. Isso é ser extremista. E, além de tudo, tudo o que alguém faz de errado (em nome da religião) volta para nós, para a comunidade muçulmana.

BBC News Brasil – O fato do Talibã ter tomando controle do Afeganistão pode criar ou aumentar preconceitos contra muçulmanos?

Campos – Já está acontecendo, aumentou muito. Minha área de pesquisa é justamente sobre islamofobia, e eu não estou dando conta de ver tudo. Porque as pessoas não sabem o que é o Islã, elas não sabem que (a situação no país) é um conflito político, não sabem muitas vezes nem onde fica o Afeganistão. Isso reverbera nos grupos mais frágeis, que são as mulheres que usam lenços, que muitas vezes sofrem ataques verbais e até físicos muito violentos. A gente precisa explicar o que isso representa para as mulheres afegãs, que têm suas lutas e movimentos que não necessariamente são os mesmos daqui, e descolonizar um pouco o olhar sobre esse povo e sobre as próprias mulheres muçulmanas que estão no Brasil. Porque há uma diversidade entre os muçulmanos – eles não são iguais, vêm de culturas diferentes, têm valores diferentes. Eu fiquei vendo várias postagens de mulheres falando sobre o lenço, dizendo para muçulmanas tirarem o lenço… Não é o lenço que é o problema.

BBC News Brasil – O uso do lenço pelas mulheres é um dos aspectos mais reconhecíveis do Islã para muitas pessoas. Essa peça é sinônimo de opressão?

Campos – O uso do hijab é uma obrigação alcorânica, mas existe o livre arbítrio. Tenho várias amigas muçulmanas que não usam — e elas não são mais ou menos muçulmanas, só não estão seguindo um preceito religioso. Existem sociedades e famílias que permitem que suas filhas escolham, e tem sociedades teocráticas, como a Arábia Saudita, o Irã, que obrigam. Se existem sociedades em que as mulheres vivem sem roupas, usam pinturas corporais, porque as mulheres muçulmanas não podem vestir as vestimentas tradicionais? Porque, se algumas questionam, outras não questionam ou escolhem usar. Faz parte da cultura e da individualidade delas.

BBC News Brasil – O que o uso do lenço representa para uma mulher muçulmana que escolhe fazer uso dele

Campos – Tem vários significados que eu colhi nas minhas pesquisas. Para algumas mulheres, é um empoderamento, para outras é religiosidade, para outras é um ato político. Se você pensar nas opressões contra mulheres muçulmanas que tiveram mais destaque na França, começando em 1989, a partir daí houve uma revolta tão grande das mulheres de origem islâmica que muitas que não usavam o lenço passaram a usar, como um ato político. Eu, por exemplo, sou muçulmana há muitos anos e sou docente da USP há mais de dez anos. E eu sempre tive o desejo de usar, mas eu não tinha coragem. Por medo da islamofobia, ou por medo de intimidar os meus alunos, passavam mil coisas pela minha cabeça. Mas quando eu comecei a ver a quantidade de meninas que não tinham a mesma estabilidade que eu, que estão lutando para usar o lenço e recebem todo tipo de ofensa, eu resolvi usar.

BBC News Brasil – O que é essencial esclarecer sobre o Islã para quem não conhece a religião e só leu ou ouviu sobre ela em notícias sobre grupos fundamentalistas?

Campos – A primeira coisa é tirar essa imagem de que a Sharia é o mal. O que é a Sharia? Sharia significa “caminho”, são as orientações do Corão, os ensinamentos e as atitudes do Profeta Muhammad. Quem é muçulmano pratica a Sharia: os muçulmanos rezam, os muçulmanos fazem jejum, isso faz parte da Sharia. O tipo de casamento islâmico, o tipo de divisão de herança etc. O que acontece é que esses escritos, esse código de conduta, passa por uma interpretação, então quanto mais sábio, mais erudito, quanto mais compreensão da língua árabe (língua do Corão), melhor a interpretação. Existem diversas escolas e formas de interpretação e interpretações literalistas, às vezes aliadas ao analfabetismo, com pessoas que têm pouco conhecimento da língua, podem acabar caindo para o extremismo, como aconteceu com o Talibã de 20 anos atrás.

Outro ponto é em relação aos direitos das mulheres. As mulheres têm direitos no mundo muçulmano desde o século 7, desde o advento do Islã. Isso não quer dizer que em todas as sociedades esses direitos sejam garantidos. É como nós no Brasil — temos direitos, mas nem sempre eles são garantidos. As mulheres têm direito de voto, de escolher o marido, de usar anticoncepcional, direito ao prazer, à herança, ao divórcio, ao conhecimento. É um grande absurdo o Talibã proibir o estudo das mulheres. Não tem nada no Islã que diga que as mulheres não devam estudar, ao contrário: a primeira palavra revelada do Corão é “leia”.

Existe uma diferença entre o Islã religião (que eu escrevo com m, islam) e o islã político, que na academia a gente tecnicamente chama de islamismo. O Talibã está dentro desse islã político, que se apropria da religião para uma ação política. Nessa categoria você pode colocar o Talibã, a Irmandade Muçulmana, e outros movimentos políticos que nascem dentro de uma perspectiva religiosa. E há muitas divisões mesmo nesses movimentos políticos, com formas diferentes de interpretar a religião: mística, tradicionalista, reformista, literalista etc.

Isso tem a ver com o contexto cultural e político de cada lugar, não com a religião. O patriarcado e o machismo estão em todas as sociedades. Os homens são machistas dentro do Islã, fora do Islã, com religião, sem religião. Mas isso não impede que as mulheres construam suas agências, suas formas de luta e suas formas de resistência.

BBC News Brasil – É possível ser feminista e muçulmana?

Campos – Sim, claro! Desde o século 18, as mulheres muçulmanas já tinham movimentos estruturados. Não necessariamente elas chamavam de movimentos feministas, mas há movimentos estruturados de mulheres. O Afeganistão é um exemplo: as meninas, quando o Talibã estava no poder pela primeira vez, elas pegavam as câmeras e colocam embaixo da burca e filmavam todas as atrocidades as violência que elas viam.

BBC News Brasil – Malala Yousafzai, do Paquistão, ficou mundialmente conhecida por querer estudar e ser atacada pelo Talibã.

Campos – Olha, eu não acho que a Malala é um grande exemplo de resistência. Onde ela sofreu o atentado, 80 crianças foram assassinadas pelos Estados Unidos, e ela nunca falou sobre essas crianças. É uma violência, um absurdo o que aconteceu com ela, mas eu não a considero um símbolo. Ela silencia sobre a morte dessas crianças e sobre a morte das mulheres do Afeganistão pela Inglaterra. Ela foi muito usada pelos Estados Unidos para falar o que eles queriam que uma mulher muçulmana falasse. Então, eu acho que o símbolo de resistência são as mulheres do Afeganistão que resistem ao Talibã todos os dias. Considero mais símbolo a Benazir Bhutto (ex-primeira ministra do Paquistão).

BBC News Brasil – Qual o impacto da islamofobia para as mulheres muçulmanas no Brasil?

Campos – O impacto da islamofobia é muito grande. A islamofobia no Brasil é de classe. O que minha pesquisa aponta é que a islamofobia afeta muito mais as mulheres revertidas (convertidas) ao Islã, de classe média baixa, jovens e acima de 40 anos. As mulheres que andam de metrô, de ônibus, que andam a pé, que têm subempregos, são essas que são as mais afetadas. Se você anda de carro, você está mais protegida. Mas vai pegar um metrô às seis da tarde de lenço. É uma vulnerabilidade. As mulheres nascidas no Islã também sofrem intolerância, mas elas têm mais apoio. A mulher que se converte, ela vai sozinha, ela não faz parte de uma comunidade, não tem uma família muçulmana para dar apoio.

A gente achava que as redes sociais teriam a maior parte das agressões, mas muitas das agressões são nas ruas. Desde puxar o lenço, fazer comentários pejorativos até pedradas. Tem mulheres que já sofreram pedradas, foram perseguidas, empurradas.

(No Brasil, entre 800 mil e 1,2 milhão de pessoas são muçulmanas, segundo estimativas da Fambras, a Federação das Associações Muçulmanas do Brasil. Destas, cerca de 100 mil são convertidas, ou seja, não nasceram em famílias islâmicas.)

BBC News Brasil – A preocupação de feministas ocidentais com as mulheres no Afeganistão é legítima?

Campos – A preocupação é legítima. O que não é legítimo é que as mulheres falem pelas outras mulheres. Por exemplo: eu sou uma mulher que sempre vai estar do lado das mulheres, quer sejam muçulmanas ou não, sejam elas negras, brancas, não importa. Mas eu não posso falar por elas. Eu sou uma muçulmana que usa lenço, mas não posso falar por todas as muçulmanas que usam lenço, eu não sou eleita para isso, não sou uma representante. Eu represento o meu lugar, como acadêmica, que fala aquilo que pesquisa há mais de 20 anos.

Fonte: G1
Créditos: G1