robôs e empresas especializadas

Investigação revela exército de perfis falsos usados para influenciar eleições

Esses perfis não tinham sua foto ou nome verdadeiros, assim como os outros 17 que ele disse controlar no Facebook e no Twitter em troca de R$ 1,2 mil por mês. Eram, segundo afirma, perfis falsos com fotos roubadas, nomes e cotidianos inventados. O jovem relatou à BBC Brasil que esses perfis foram usados ativamente para influenciar o debate político durante as eleições de 2014.

As evidências reunidas por uma investigação da BBC Brasil ao longo de três meses sugerem que uma espécie de exército virtual de fakes foi usado por uma empresa com base no Rio de Janeiro para manipular a opinião pública, principalmente, no pleito de 2014.

A estratégia de manipulação eleitoral e da opinião pública nas redes sociais seria similar à usada por russos nas eleições americanas, e já existiria no Brasil ao menos desde 2012. A reportagem identificou também um caso recente, ativo até novembro de 2017, de suposto uso da estratégia para beneficiar uma deputada federal do Rio.

A reportagem entrevistou quatro pessoas que dizem ser ex-funcionários da empresa, reuniu vasto material com o histórico da atividade online de mais de 100 supostos fakes e identificou 13 políticos que teriam se beneficiado da atividade. Não há evidências de que os políticos soubessem que perfis falsos estavam sendo usados.

Com ajuda de especialistas, a BBC Brasil identificou como os perfis se interligavam e seus padrões típicos de comportamento. Seriam o que pesquisadores começam a identificar agora como ciborgues, uma evolução dos já conhecidos robôs ou bots, uma mistura entre pessoas reais e “máquinas” com rastros de atividade mais difíceis de serem detectados por computador devido ao comportamento mais parecido com o de humanos.
Parte desses perfis já vinha sendo pesquisada pelo Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura (Labic) da Universidade Federal do Espírito Santo, coordenado pelo pesquisador Fábio Malini.

“Os ciborgues ou personas geram cortinas de fumaça, orientando discussões para determinados temas, atacando adversários políticos e criando rumores, com clima de ‘já ganhou’ ou ‘já perdeu'”, afirma ele. Exploram o chamado “comportamento de manada”.

“Ou vencíamos pelo volume, já que a nossa quantidade de posts era muito maior do que o público em geral conseguia contra-argumentar, ou conseguíamos estimular pessoas reais, militâncias, a comprarem nossa briga. Criávamos uma noção de maioria”, diz um dos ex-funcionários entrevistados.

Esta reportagem é a primeira da série Democracia Ciborgue, em que a BBC Brasil mergulha no universo dos fakes mercenários, que teriam sido usados por pelo menos uma empresa, mas que podem ser apenas a ponta do iceberg de um fenômeno que não preocupa apenas o Brasil, mas também o mundo.

Segundo Pablo Ortellado, professor do curso de Gestão de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo (USP), a suspeita de que esse seria um serviço oferecido normalmente para candidatos e grupos políticos “faz pensar que a prática deva já estar bem disseminada nesse ambiente político polarizado e que vai ser bastante explorada nas eleições de 2018, que, ao que tudo indica, serão ainda mais polarizadas que as últimas de 2014”.

Philip Howard, professor do Instituto de Internet da Oxford, vê os ciborgues como “um perigo para a democracia”. “Democracias funcionam bem quando há informação correta circulando nas redes sociais”, afirma, colocando os fakes ao lado do problema da disseminação das fake news, ou seja, notícias falsas.

Exército fake
Em 2012, segundo os entrevistados pela BBC Brasil, o empresário carioca Eduardo Trevisan, proprietário da Facemedia, registrada como Face Comunicação On Line Ltda, teria começado a mobilizar um exército de perfis falsos, contratando até 40 pessoas espalhadas pelo Brasil que administrariam as contas para, sobretudo, atuar em campanhas políticas.

Inicialmente, a BBC Brasil entrou em contato com Trevisan por telefone. Ele negou que sua empresa crie perfis falsos. “A gente nunca criou perfil falso. Não é esse nosso trabalho. Nós fazemos monitoramento e rastreamento de redes sociais”, afirmou, pedindo que a reportagem enviasse perguntas por email.

“Os serviços em campanhas eleitorais prestados pela Facemedia estão descritos e registrados pelo TSE, de forma transparente. Por questões éticas e contratuais, a Facemedia não repassa informações de clientes privados”, respondeu, posteriormente, por email (leia resposta completa na parte final desta reportagem).

Trevisan, cujo perfil pessoal no Twitter carrega a descrição “Brasil, Pátria do Drible”, tem quase um milhão de seguidores. Ele ganhou projeção com sua página Lei Seca RJ, criada em 2009. Seguida por 1,2 milhão de usuários, ela alerta motoristas para locais de blitze no Rio.

Um ex-funcionário disse ter sido contratado justamente achando que trabalharia administrando o Twitter do Lei Seca RJ.

“Era um trabalho bem sigiloso. Não sabia que trabalharia com perfis falsos”, diz.

Quando descobriu, conta, passou a esconder de amigos e familiares o que fazia. Hoje, afirma, tem medo de falar, porque trabalhou “para gente muito importante” e teria assinado um contrato de sigilo com a empresa.

Políticos
Os depoimentos dos entrevistados e os temas dos tuítes e publicações no Facebook levam aos nomes de 13 políticos que teriam sido beneficiados pelo serviço, entre eles os senadores Aécio Neves (PSDB-MG) e Renan Calheiros (PMDB-AL) e o atual presidente do Senado, Eunício Oliveira (PMDB-CE).

A atuação era variada. Para Aécio, perfis supostamente falsos publicaram, por exemplo, mensagens elogiosas ao candidato durante debate com Dilma Rousseff (PT) na campanha de 2014: “Aécio é o mais bem preparado”. No caso de Renan, criaram uma hashtag para defendê-lo durante protestos em 2013 que pediam o impeachment do então presidente do Senado: #MexeuComRenanMexeuComigo. Foi apoiada por usuários como “Patrick Santino”, que usa a imagem de um ator grego no perfil. Já sobre Eunício, divulgaram voto durante as eleições: “Vou com 15. Melhores propostas”.

Não há evidências de que os políticos soubessem que o uso de perfis falsos fazia parte de um serviço de consultoria em redes sociais (veja ao final desta reportagem a resposta completa de cada um).

Monitorados por Skype
Os funcionários, segundo os relatos, ficavam em diferentes Estados do país, trabalhando de casa e monitorados por Skype. Quando se levantava para ir ao banheiro, conta um deles, era preciso explicar sua ausência pelo Skype a um coordenador.

Jovens e na maioria das vezes sem curso superior, eles contam que eram chamados na empresa de “ativadores”. Recebiam de profissionais mais graduados uma “ficha técnica” e perfis prontos do que chamavam de “personas”. Continham foto, nome e história de cada um – de onde era, se era casado, se tinha filhos e quais eram seus gostos, hobbies e profissão.

Eles teriam de “ativar” o perfil, alimentando e dando prosseguimento à narrativa criada, mesclando publicações sobre sua rotina com postagens apoiando políticos.

Segundo as diferentes entrevistas, um controlador de perfis falsos recebia por volta de R$ 800 mensais quando começava a trabalhar na empresa. Nas eleições de 2014, o salário teria subido para até R$ 2 mil.

Fotos eram retiradas de bancos de imagens, roubadas de sites de notícias e de perfis existentes. A BBC Brasil identificou, por meio de pesquisa em ferramenta de busca, a origem de várias dessas fotos. Uma delas pertencia a uma jovem vítima de assassinato cuja foto havia sido publicada em um veículo de imprensa local. Algumas imagens eram manipuladas digitalmente, o que dificulta o rastreamento de sua origem.

A empresa, segundo os entrevistados, fornecia chips de celular para autenticar perfis em redes sociais.

A parte “robô”, ou semiautomatizada, não era sofisticada. Os funcionários contam e fica claro nas postagens que eram usadas plataformas que possibilitam a administração de vários perfis ao mesmo tempo, como o Hootsuite (que cobra R$ 258 mensais para que três usuários operem 20 perfis em redes sociais ao mesmo tempo).

Agendavam publicações que falavam sobre a rotina do personagem e outras mais genéricas, como “bom dia”, “vou almoçar”, “boa noite”, “estou cansado”, “dia exaustivo”, entre outras postagens semelhantes, para dar a impressão de que se tratavam de perfis reais.

Alguns “ativadores” passavam o dia fazendo isso, relatam. Outros se dedicavam a programar publicações para a semana inteira e ficavam de olho para eventuais interações que tinham de fazer, como responder a mensagens de perfis reais.

Amigos reais
Perfis falsos criam “reputação” e parecem ser legítimos adicionando pessoas aleatórias com o objetivo de colecionar amigos reais.

Pessoas reais chegam a dar parabéns a fakes em aniversários mesmo sem conhecê-los e fazem comentários elogiosos a fotos de perfil, ajudando a criar a sensação de que são verdadeiros. É desta forma que, inadvertidamente, usuários reais contribuem para a criação de “reputação”.

A reportagem detectou que os perfis identificados como fakes também interagem entre si – encontrou até um “casal” de perfis falsos.

Uma ex-funcionária ouvida pela BBC Brasil afirma que, na época, não sabia que trabalhava administrando perfis falsos. Segundo ela, quando trabalhou na empresa, de 2012 a 2014, tinha acesso a perfis no Facebook de pessoas que eram “apoiadores” de candidatos, como se eles tivessem cedido o acesso. Ela conta que seu trabalho era monitorar o que era publicado sobre candidatos e fazer comentários que os apoiassem por meio dos perfis que controlava.

“Eu já desconfiei que não eram de pessoas reais, mas não sei se eram. Eu não tinha muita malícia na época. Como eu só tinha acesso a publicar determinados conteúdos, eu não verificava muito os perfis.”

Outro ex-funcionário define o trabalho, do qual chega a ter até um pouco de orgulho: “Você é só uma pessoa mascarada atrás de um perfil. A resposta é forte, o retorno é bom. Você sente que realmente faz diferença na campanha”.

Quando um fake era “desmascarado” por outros usuários ou desativados pelas plataformas, logo havia outro para substituí-lo, que vinha de um grande banco de perfis falsos criado e mantido pela empresa, também de acordo com os entrevistados.

Muitos dos perfis reunidos pela BBC Brasil foram abandonados. Cerca de um quinto dos identificados no Twitter publicaram mensagens pela última vez entre os dias 24 e 27 de outubro de 2014. O segundo turno das eleições daquele ano aconteceu no dia 26 de outubro.

Um dos ex-funcionários entrevistados diz que os perfis identificados como falsos pela BBC Brasil representam apenas uma pequena parcela do fenômeno, já que a empresa teria criado “milhares” de perfis como estes. Ele diz também que havia empresas concorrentes fazendo o mesmo no Brasil.

Um tipo de atuação comum, segundo os entrevistados, era deixar comentários em sites de notícias e também votar em enquetes, como as do site do Senado, tomando até o cuidado de deixar a opinião oposta ultrapassar um pouco antes de vencê-la, para que “tudo parecesse muito orgânico e natural”, nas palavras de um ex-funcionário. “Às vezes, dez pessoas ficavam votando em determinada opção durante oito horas do dia.”

Como identificar um fake?
Para identificar os perfis supostamente falsos, com a ajuda de especialistas, a reportagem levou em consideração elementos como: o uso de fotos comprovadamente falsas, modificadas ou roubadas; a publicação de mensagens a partir da mesma ferramenta externa às redes sociais; o padrão de mensagens que simulam rotina, com repetição de palavras; a participação ativa nas redes durante debates e “tuitaços”; atividade apenas durante o horário “útil” do dia; as recorrentes mensagens de apoio ou de agressão a candidatos específicos e, por fim, vários casos de datas coincidentes de criação, ativação e desativação dos perfis.

Malini, o acadêmico do Espírito Santo cujo grupo que coordena já pesquisava parte dos supostos fakes identificados pela BBC Brasil, elaborou o que especialistas chamam de “grafo”, um desenho gerado por computador que espelha o histórico da interação e atividade dos perfis no Twitter. Isso inclui os retuítes, menções a outros usuários e comentários em tuítes feitos pelos usuários com características falsas.

O resultado mostra os perfis com os quais estabeleceram o maior número de interações, gerando uma espécie de “nuvem”.

Nela, aparecem os políticos mencionados pelos ex-funcionários como clientes da empresa, a página Lei Seca RJ e, no centro, Eduardo Trevisan, “inflacionado” pela atividade dos supostos fakes. “Ele é uma figura central, que recebe menções e retuítes de grande parte dos usuários analisados”, afirma Malini. “Essa alta centralidade salta aos olhos e aponta quem deve ser investigado”, acrescenta.

Pagamentos
Por meio da análise de pagamentos legais disponíveis ao público em prestações de contas, a BBC Brasil conseguiu mostrar a ligação da Facemedia de Trevisan com três políticos e um partido, o PSDB. A empresa recebeu também, neste caso, segundo dados de um relatório disponível no site da Câmara, transferência de uma agência de propaganda e marketing. No total, os pagamentos feitos pelas cinco partes somam R$ 1,2 milhão. Veja em detalhes abaixo, e um resumo da resposta de cada um:

– A empresa de Trevisan recebeu R$ 360 mil do Comitê Nacional do PSDB para a campanha presidencial em 2014 pela “prestação de serviços de marketing e comunicação digital”, segundo consta da prestação de contas do partido. O PSDB disse que a empresa foi contratada para prestação de serviços de melhoria e monitoramento de movimento e tendências nas redes sociais.

– A Facemedia também recebeu R$ 200 mil de Renan Filho (PMDB) em 2014, então candidato ao governo de Alagoas, segundo a prestação de contas. A assessoria do político, que venceu a eleição, disse que a empresa foi contratada para prestação de serviços de monitoramento e análise digital das redes sociais durante a campanha e acompanhamento do interesse do eleitor. “Em nenhuma hipótese houve contratação ou realização de pagamento para a criação de perfis falsos ou divulgações online por estes em favor da campanha.”

– Recebeu também R$ 30 mil do ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) Vital do Rêgo Filho (PMDB), então candidato ao governo da Paraíba, de acordo com os dados públicos. Sua assessoria afirmou que o candidato “utilizou serviços de mídias sociais para divulgação regular de sua campanha, desconhecendo qualquer criação de perfis falsos por parte da empresa contratada”.

– Os mais recentes pagamentos encontrados pela reportagem vieram da cota parlamentar do gabinete da deputada federal Laura Carneiro (PMDB-RJ). A empresa de Trevisan recebeu R$ 14 mil por mês por “divulgação da atividade parlamentar por meio da diagramação, manutenção e alimentação das suas mídias sociais (Instagram, Facebook, Twitter)” de fevereiro a setembro deste ano, totalizando R$ 112 mil. As datas coincidem com o período de atividade de um grupo de perfis supostamente falsos identificados pela BBC Brasil atuando na página da deputada. A assessoria dela disse que “os serviços prestados eram de monitoramento e de divulgação do mandato parlamentar nas mídias sociais. A deputada não tem qualquer conhecimento sobre o uso antiético de perfis falsos em qualquer prestação de serviços realizados por essa empresa”.

– Entre março de 2014 e julho de 2014, a Facemedia recebeu R$ 504 mil da agência PVR Propaganda e Marketing Ltda, de Paulo Vasconcelos, marqueteiro da campanha de Aécio à Presidência. O pagamento da PVR foi descrito em um relatório produzido pelo Conselho de Controle de Atividades Financeira (Coaf) em julho deste ano. Não é possível determinar no registro do pagamento quais dos clientes da PVR teriam se beneficiado dos serviços da Facemedia. A agência tinha entre seus clientes o PSDB e a J&F, controladora da JBS. A JBS foi identificada como tema em diferentes tuítes, entre os reunidos pela BBC Brasil, e também citada por um ex-funcionário como cliente da Facemedia. A J&F não quis comentar. A PVR disse que contratou a Facemedia “para prestação de serviços de monitoramento e análise do ambiente político”. A empresa nega que tenha feito algum pagamento para divulgação da candidatura de Aécio Neves.

Outros políticos
Um ex-funcionário de Trevisan cita uma longa lista com outros políticos que também teriam contratado o serviço. Todos eles foram citados em algum momento pelos perfis falsos identificados pela BBC Brasil. São eles: o presidente do Senado, Eunício Oliveira (PMDB-CE), os senadores Renan Calheiros (PMDB-AL), Eduardo Braga (PMDB-AM) e Ricardo Ferraço (PSDB-ES), o governador do Espírito Santo, Paulo Hartung (PMDB), o ex-prefeito de Vila Velha (ES) Rodney Miranda (DEM), o secretário municipal de Urbanismo, Infraestrutura e Habitação do Rio de Janeiro, Índio da Costa (PSD), o ex-senador Gim Argello (DF) e o ex-deputado estadual Felipe Peixoto (PSB-RJ).

Eles negaram ter conhecimento sobre qualquer uso de perfis falsos nesse contexto. Não há nenhum indício de que os citados acima sabiam da existência e do uso de fakes nas suas redes sociais como parte de um serviço para favorecê-los.

Wallim Vasconcelos, que foi candidato à presidência do Flamengo, também é citado pelo ex-funcionário e também foi tema de tuítes de perfis considerados falsos. Ele encaminhou à BBC Brasil a resposta de sua assessoria à época das eleições. Disseram que a Facemedia fazia apenas “monitoramento” das redes.

O único citado com quem a reportagem não conseguiu contato foi Gim Argello, hoje preso da operação Lava Jato. Seu advogado, Marcelo Bessa, disse que não tem procuração para responder sobre esse assunto.

Responsabilidade
Perfis falsos foram usados para tentar influenciar as eleições americanas no ano passado e representam uma crescente preocupação no mundo ao lado das notícias falsas, facilmente compartilhadas nas redes, e também do papel da propaganda direcionada nas redes sociais, mecanismo que teria sido usado por russos nas eleições dos EUA. O Facebook declarou ter desativado 470 contas e páginas “provavelmente operadas da Rússia”, que publicavam conteúdo que visava causar maior divisão nacional em tópicos como direitos LGBT e questões raciais e de imigração.

O reflexo desta tendência no Brasil levou especialistas ouvidos pela BBC Brasil a reforçar um apelo por ação mais rigorosa tanto do Twitter quanto do Facebook.

Para Pablo Ortellado, professor da USP, deve haver maior transparência e regulação nas plataformas como o Facebook, que deve começar a agir “como se fosse um Estado, já que virou a nova esfera pública” onde acontecem discussões e interações entre as pessoas. Ou seja, para ele, a plataforma deve começar a se autorregular, se não quiser ser regulada pelos Estados, um cenário também não livre de polêmicas.

O Twitter informa que “a falsa identidade é uma violação” de suas regras. “As contas do Twitter que representem outra pessoa de maneira confusa ou enganosa poderão ser permanentemente suspensas de acordo com a Política para Falsa Identidade do Twitter. Se a atividade automatizada de uma conta violar as Regras do Twitter ou as Regras de Automação, o Twitter pode tomar medidas em relação à conta, incluindo a suspensão da conta.”

Já o Facebook informa que suas políticas “não permitem perfis falsos”. “Estamos o tempo todo aperfeiçoando nossos sistemas para detectar e remover essas contas e todo o conteúdo relacionado a elas. Estamos eliminando contas falsas em todo o mundo e cooperando com autoridades eleitorais sobre temas relacionados à segurança online, e esperamos tomar medidas também no Brasil antes das eleições de 2018.”

A empresa também afirma que não pode comentar os perfis citados na reportagem porque não teve acesso a eles antes da publicação deste texto. “Entretanto, vale ressaltar que durante as eleições de 2014 mais de 90 milhões de pessoas no Brasil usaram a plataforma para debater temas relevantes para elas e engajar com seus candidatos.”

Roteiro
O padrão de criação de uma conta falsa no Twitter e no Facebook, segundo os entrevistados, seguia um roteiro: durante um ou dois meses, determinado perfil apenas tuitava sobre sua rotina, publicando tuítes muito parecidos para “martelar” ou “fixar” seu cotidiano por meio das publicações agendadas, com características e hobbies que são muito claros: há a mãe que gosta de assistir a séries e faz pilates, a universitária que fala sobre seus estudos, o síndico de prédio que gosta de futebol.

De repente, uma aglomeração de tuítes a favor de determinado político interrompe esse padrão – e aí entram de fato seres humanos, assistindo aos debates na televisão e fazendo comentários ou promovendo “tuitaços” a favor de seu candidato.

Um dos tuitaços de que participaram os usuários fakes foi para que o perfil Lei Seca RJ fosse nomeado ao prêmio Shorty, que reconhece pessoas e organizações que produzam bom conteúdo nas redes sociais.

Em alguns casos, o histórico revela “reciclagem” de perfis, apoiando diferentes candidatos ao longo do tempo. Em 5 de outubro de 2014, “Fernanda Lucci”, que usa no perfil uma foto de Petra Mattar, cantora e filha do ator Maurício Mattar, escreve ter dado seu voto para Renan Filho (PMDB), então candidato ao governo de Alagoas.

Já no dia 24 de outubro, escreve: “Dia 26 quero #Eunicio15 para mudar CE”, em referência ao senador Eunício Oliveira (PMDB), que na época concorria ao governo do Ceará.

Dois meses antes, ela elogiava Paulo Hartung (PMDB), então candidato ao governo do Espírito Santo, por sua performance em um debate, sempre incluindo também uma hashtag em referência a esses políticos.

Parte dos perfis identificados como falsos estavam ativos até novembro deste ano, interagindo, curtindo e comentando em publicações da deputada federal Laura Carneiro (PMDB-RJ), como fazem os perfis de “Marcos Vieira” e “Breno Marson”, que tagueiam perfis de pessoas com maior proeminência no Twitter para tentar aumentar o alcance da publicação.

A assessoria de imprensa da deputada diz não ter “conhecimento sobre o uso antiético de perfis falsos em qualquer prestação de serviços realizados por essa empresa”.

Uma publicação sobre vacinação antirrábica na página do Facebook da parlamentar, do dia 26 de setembro deste ano, tem nove comentários. Cinco deles foram feitos por perfis identificados como ciborgues, com poucos minutos de diferença.

“Romulo Borges” comenta que a iniciativa da deputada é “Super importante!!!”. Ele tem 71 amigos e começou a publicar no Facebook, em março deste ano, textos como “esperando a hora de chegar em casa e comer sobra de pizza” e “segunda-feira chuvosa e fria”, sempre da plataforma Hootsuite.

“Borges” também tem um perfil no Twitter, com a mesma foto e mesmo nome. Foi criado em 2010 e ficou ativo entre julho e outubro de 2014, quando tuitava sobre sua rotina (“bom dia”, “trabalho pesado”, “fome”, “boa noite” são expressões recorrentes).

Na época, chegou a tuitar sobre um debate entre Dilma Rousseff (PT) e Aécio, criticando a performance de Dilma. Encerrou suas atividades no fim de outubro daquele ano e só voltou em março de 2017. Hoje em dia, curte no Twitter quase todas as publicações de Laura Carneiro. Uma pesquisa feita pela BBC Brasil revela que sua foto, na realidade, pertence a outra pessoa.

Ator grego
Também fora de campanha, mas em 2013, Renan Calheiros (PMDB-AL) teria contratado a empresa para cuidar de sua imagem, segundo um dos entrevistados.

Naquele ano, quando manifestações pelo Brasil pediam o impeachment do então presidente do Senado, os perfis supostamente falsos criaram a hashtag #MexeuComRenanMexeuComigo, defendendo o político nas redes e criando a falsa ilusão de que ele era apoiado por aquele grupo de pessoas.

O perfil falso abaixo, de “Patrick Santino”, entrou em uma briga com outro usuário (que já não está mais ativo) usando a hashtag para defender o senador, num tuíte replicado 777 vezes. Sua foto de perfil pertence ao ator e cantor grego Sakis Rouvas.

Pressão por projeto de lei
Ao menos oito perfis falsos identificados pela BBC Brasil fizeram postagens positivas em relação à Friboi, da JBS. Segundo um dos entrevistados pela reportagem, a empresa contratou os serviços da agência para “botar pressão” pela aprovação de um projeto de lei que exigisse de todos abatedouros no Brasil um selo mais rígido – favorecendo o frigorífico, que teria a capacidade de tê-lo. A J&F Investimentos, holding que controla a JBS, não quis comentar.

“Letícia Priori” está no Twitter e no Facebook, onde já escreveu sobre Aécio Neves (PSDB), Renan Filho (PMDB) e Eunício Oliveira (PMDB). Quando não fala sobre políticos, escreve a respeito das sobrinhas e do chefe. E, numa manhã de quarta-feira, recomenda a seus seguidores uma receita da Friboi, acompanhada de sua hashtag. A foto de “Letícia” pertence a uma mulher morta. A BBC Brasil tentou entrar em contato, sem sucesso, com a família da jovem real, assassinada de forma brutal no Rio de Janeiro.

Ataque a inimigos

Os perfis, segundo os entrevistados, também participavam de grupos políticos no Facebook. A BBC Brasil identificou um grupo contra Renato Casagrande (PSB), então candidato ao governo do Espírito Santo, criado por “Deborah Mendes”, que usa foto de perfil retirada de um banco de imagens e é um dos perfis que seriam ligados à Facemedia. A atividade da página mostra que ela adicionou um funcionário da Facemedia ao grupo.

Casagrande disputava as eleições com o atual governador Paulo Hartung (PMDB), defendido pelos perfis falsos.

Ao menos uma dezena dos membros do grupo são fakes. Outra parte é composta por pessoas verdadeiras, que foram expostas às postagens no grupo, visualizando notícias e comentários publicados por eles, sempre contra o candidato. Quando um perfil publicava uma notícia, imediatamente outros comentavam abaixo dela, dando “força” à publicação.

‘Esse tal de Twitter’
Em 2009, Trevisan foi convidado para o programa matinal de Ana Maria Braga na TV Globo para falar sobre “esse tal de Twitter”, nas palavras dela. Apresentou-se como “consultor de marketing”, que trabalhava “monitorando marcas e produtos” nas redes sociais e disse ter recebido treinamento dos “papas de Twitter” da campanha do então presidente americano Barack Obama. Em seu Instagram, Trevisan posta imagens com logos do Facebook e do Twitter agradecendo sua existência.

Foi entrevistado várias vezes para reportagens sobre a página Lei Seca RJ, sempre dizendo que ela fora criada com o intuito de melhorar a vida de quem não havia bebido e perdia tempo nas filas das blitze no Rio – e não por quem bebe acima do limite, dirige e quer escapar da lei.

Em 2010, Trevisan foi homenageado pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro “por seu relevante serviço voluntário prestado em prol dos atingidos pelas fortes chuvas do mês de abril” – a autora da proposta foi a então vereadora Clarissa Garotinho. Na época, a página Lei Seca RJ orientou seguidores publicando informações sobre as enchentes.

Implicações legais
Apenas criar um perfil falso sem a intenção de enganar os outros, ou seja, de modo transparente, não é ilegal e “se aproxima ao conceito do pseudônimo, de criar uma identidade nova”, diz a advogada Patrícia Peck, especialista em direito digital. “Onde começa a ter problema? Quando o pseudônimo existir com a finalidade de enganar outros, entrando no crime da falsa identidade.”

A criação de perfis expostos nessa reportagem, segundo ela, se encaixaria no crime de falsa identidade, já que interagiram com outras pessoas sem deixar claro que eram falsos. A pena é detenção de três meses a um ano ou multa.

Os perfis falsos que usaram imagens de pessoas reais cometeram o ilícito civil do uso não autorizado de imagem. As pessoas reais, donas das fotos, podem pedir indenização. Também podem alegar na Justiça que houve crime contra a honra, por difamação – “quando você fala como se fosse outra pessoa, pode construir uma imagem diferente da dela e ferir sua imagem e reputação”, diz Peck. A pena é de três meses a um ano de detenção e multa.

A criação de personagens nas redes sociais também pode ser enquadrada no crime de falsidade ideológica, na visão de Peck, para quem as páginas são uma espécie de documento, cuja falsificação é pré-requisito para esse tipo de crime. A pena é reclusão de um a três anos e multa.
E, por fim, caso seja provado que houve alguma espécie de ganho com a criação dos perfis falsos, é possível que seja enquadrada no crime de estelionato. A pena é reclusão de um a cinco anos e multa.

A transgressão é menos clara no campo político, mas foi em parte endereçada na reforma eleitoral aprovada em outubro. E o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) se prepara para divulgar até dezembro um conjunto de novas regras de comportamento online para partidos e candidatos.

A nova legislação proíbe “a veiculação de conteúdos de cunho eleitoral” por meio de “cadastro de usuário de aplicação de internet com a intenção de falsear identidade”.

Mas isso durante o período eleitoral – já passaram os prazos para quaisquer reclamações referentes às eleições de 2012 e 2014.

O que dizem os citados na reportagem

Eduardo Trevisan

“A Facemedia é uma empresa de comunicação digital consolidada no mercado há dez anos. Nesse período, prestamos serviços para mais de uma centena de clientes. Nossa empresa é especializada em planejamento estratégico de marketing digital, criação e manutenção de sites e perfis, monitoramento de redes e bigdata, especializada em diversas técnicas de marketing como SEO, SEM, copywriting, branding, design thinking, relacionamento com influenciadores digitais entre outros. Além de atender a ampla carteira de clientes privados, a Facemedia utiliza seu know-how de mobilização digital em causas sociais. Em 2011, por exemplo, a Facemedia foi agraciada pelo The New York Times com o ‘Oscar do Twitter’, pela ajuda humanitária aos desabrigados da tragédia das chuvas que atingiram a Região Serrana no Rio de Janeiro. Na ocasião, centenas de pessoas em situação de risco foram ajudadas por meio dos canais digitais da empresa, com mais de 5 milhões de pessoas conectadas. As conexões entre os perfis são estabelecidas por critérios das próprias redes sociais, inexistindo o conceito de ‘vinculação’, sugerido na pergunta. Os serviços em campanhas eleitorais prestados pela Facemedia estão descritos e registrados pelo TSE, de forma transparente. Por questões éticas e contratuais, a Facemedia não repassa informações de clientes privados.”

Fonte: BBC
Créditos: BBC