tortura, assassinatos e histórias

Guia para não passar vergonha quando falar de ditadura

ditadura militar
 

Em seus 55 anos, o golpe militar de 1964 nunca esteve tão atual. Depois de o presidente Jair Bolsonaro ordenasse a comemoração da data por parte das Forças Armadas —decisão contestada na Justiça e que causou forte reação da sociedade civil—, atos pró e contra a ditadura militar brasileira ocorreram em diversas cidades do Brasil e terminaram em confrontos em São Paulo. Enquanto o Palácio do Planalto divulgava por WhatsApp um vídeo em defesa da “revolução de 1964”, dez capitais mobilizaram-se em atos pela memória das vítimas diretas e indiretas da ditadura e contra o revisionismo do presidente. Dias depois, o ministro da Educação, Ricardo Vélez, prometeu mudar livros didáticos por “visão mais ampla” da ditadura, tornando uma política de Governo o “negacionismo histórico”.

Em meio ao fogo cruzado do debate, o EL PAÍS faz uma lista de livros, filmes e documentos essenciais para não passar vergonha na hora de falar sobre esse período da história do Brasil.

1. A Casa da Vovó

Neste livro lançado em 2014, o jornalista Marcelo Godoy conta a história do DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna) de São Paulo, órgão de repressão subordinado ao Exército, depois de ouvir alguns dos mais ativos agentes que participaram de sequestros e torturas durante a ditadura militar. Godoy explica que a lógica de investigação policial aliada às práticas e hierarquias militares que originaram o DOI-Codi resultaram numa máquina de tortura e assassinatos. Além de mais de duas dezenas de entrevistas com pessoas que defendiam o regime, o jornalista também realizou uma dedicada leitura dos principais livros e teses acadêmicas sobre a repressão, tendo acesso a documentos inéditos que mostram as engrenagens do DOI-Codi paulista e sua articulação com o sistema de informação e repressão da ditadura.

2. O ano em que meus pais saíram de férias (2006)

Guia para não passar vergonha quando falar de ditadura

Entre 1964 e 1985, “sair de férias” muitas vezes significava fugir para viver na clandestinidade, no caso dos dissidentes políticos perseguidos pelo regime militar. É o que acontece com os pais de Mauro, de 12 anos, neste filme de Cao Hamburger. Em 1970, enquanto a seleção de Pelé, Tostão, Gerson e Rivellino brilhava rumo ao tricampeonato na Copa da México, a repressão da ditadura aumentava. O longa-metragem conta essa história através da visão infantil do protagonista, que é deixado com o avô paterno quando seus pais precisam fugir para não morrer.

3. Estranhas catedrais: as empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar

Neste livro, o historiador Pedro Henrique Pereira Campos, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), identifica no período entre 1964 e 1988 a origem da inserção, contaminação e subordinação dos governos brasileiros aos interesses do segmento dos empreiteiros. A publicação põe foco no crescimento e consolidação das principais empresas de construção pesada no país, algo que, de acordo com o autor, propiciou o desenvolvimento expressivo, a modernização e a internacionalização das “gigantes do setor”. Ao demonstrar as injunções políticas, estratégias e práticas que permeiam as relações da iniciativa privada e poder público e sua legitimação por “intelectuais orgânicos”, a publicação constata e fornece elementos de compreensão acerca de recentes escândalos de corrupção, como os investigados pela Operação Lava Jato.

4. Uma noite de 12 anos (2018)

Conhecido como o “filme do Mujica”, Uma noite de 12 anos, do uruguaio Álvaro Brechner, recria a odisseia do ex-presidente José Mujica como preso político entre 1972 e 1985 —que pertencia à guerrilha dos Tupamaros—. O longa-metragem retrata aspectos em comum entre as ditaduras brasileira e uruguaia, como as incontáveis sessões de tortura a que eram submetidos Mujica e seus companheiros.

5. Cativeiro sem fim

Depois de 20 anos de intensa investigação, o jornalista Eduardo Reina publica, em 2019, o livro Cativeiro Sem Fim, que lança luz sobre um dos crimes mais invisibilizados durante o regime militar: o sequestro e adoção ilegal de crianças por parte de famílias militares ou de pessoas ligadas às Forças Armadas. Reina contabilizou pelo menos 19 casos, entre eles o de Rosângela Serra Paraná, que teve a certidão de nascimento forjada ao nascer e, até hoje, 60 anos depois, ainda desconhece a origem de sua família biológica.

6. Kamchatka e A história oficial

Outras obras que mostram como regimes ditatoriais afetam as crianças são as ficções argentinas Kamchatka (2003) e A história oficial (1985). Kamchatka conta a vida na clandestinidade a partir do ponto de vista de Harry, de 10 anos, que tem que fugir com os pais para o campo em 1970. Já A história oficial narra a história de uma mãe que, ao descobrir sobre os sequestros de crianças e outras atrocidades ocorridas na ditadura argentina, começa a investigar a origem de sua filha adotiva.

7. Coleção Elio Gaspari

Considera um clássico sobre o período de governos militares no Brasil, a coleção de Elio Gaspari —formada pelos os livros A ditadura envergonhada, A ditadura escancarada, A ditadura derrotada, A ditadura encurralada e A ditadura acabada— ganhou uma edição revista e atualizada. As versões digitais trazem fac-símiles de documentos pesquisados e citados na publicação, além de fotos, vídeos e áudios.

8. Torre das donzelas (2018)

O documentário de Susanna Lira traz o relato de um grupo de mulheres —incluindo a ex-presidenta Dilma Rousseff— 40 anos depois de terem sido presas entre 1969 e 1972 na ala feminina do presídio Tiradentes, em São Paulo, pavilhão conhecido como Torre das Donzelas e destinado às presas políticas. A organização do espaço, o preparo das refeições, os dias de visita, as conversas sobre política e sexualidade, as estratégias para resistir compõem a colcha de retalhos de um percurso intenso e pulsante. “Eu acho que nós demos felicidade para nós na pior situação possível”, diz Rousseff em determinado momento do documentário. Todas as mulheres que aparecem no longa foram fichadas como “terroristas” e torturadas. Torre das donzelas venceu o prêmio especial do júri no Festival de Brasília e o prêmio de melhor documentário segundo o júri popular na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e no Festival do Rio (onde também arrematou o prêmio do júri oficial)

9. Barra 68 – Sem perder a ternura (2001)

O documentário de Vladimir Carvalho mostra a luta de Darcy Ribeiro no início dos anos 1960 para criar e implantar a Universidade de Brasília (UnB). Narrada por Othon Bastos, a obra traz depoimentos de Oscar Niemeyer, Roberto Salmeron, Jean-Claude Bernardet, Ana Miranda, Marcos Santilli, Cacá Diegues, José Carlos de Almeida Azevedo e familiares de Honestino Guimarães, além de resgatar as repetidas agressões sofridas pela universidade, desde o golpe de 1964 até os acontecimentos de 1968, quando tropas militares ocuparam o campus da UnB. Naquela ocasião, prenderam e atiraram nos estudantes, sendo que 500 deles foram detidos numa quadra de esportes. A crise culmina no Ato Institucional nº 5, o AI-5, que fechou o Congresso Nacional.

10. Cidadão Boilesen (2009)

Este documentário de 2009, dirigido por Chaim Litewisk, conta a vida e morte de Henning Boilesen, empresário dinamarquês dono da Ultragaz. Diretor da FIESP (Federação das Indústria do Estado de São Paulo) e da Associação Comercial de São Paulo, Boilesen teve participação direta na OBAN, organização clandestina e repressiva, financiada por vários empresários e criada em São Paulo para combater o movimento armado —seus membros faziam pagamentos regulares para financiar operações de caça aos chamados terroristas—. A OBAN foi o embrião do que viria a ser o DOI-Codi, criado em 1971.

11. Comissão Nacional da Verdade, Instituto Vladimir Herzog e MPF

Duas das principais fontes documentais da ditadura militar brasileira são os sites da Comissão Nacional da Verdade, que reúne os relatórios sobre os diversos crimes e violações dos direitos humanos realizados durante os regimes militares, e do Instituto Vladimir Herzog, que mantém viva a memória do jornalista, que foi assassinado no DOI-Codi no dia 25 de outubro de 1975. Todo o material da Comissão da Verdade também está reunido, de forma mais acessível, no Facebook.

O Ministério Público Federal (MPF) trabalha há 20 anos tentando responsabilizar criminalmente os agentes de Estado envolvidos nos crimes e violações dos direitos humanos ocorridos durante a ditadura. Em fevereiro, o órgão lançou o site Justiça de Transição, que reúne a documentação sobre todos os casos denunciados e investigados, além de informações sobre as vítimas.

Fonte: El País
Créditos: NOELIA RAMÍREZ