Guerra suja na selva

fotoNonato Guedes

O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) quer saber quais providências foram adotadas pelo governo federal para cumprir a sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA, condenando o Brasil por não ter punido os responsáveis por mortes e desaparecimentos na guerrilha do Araguaia. O questionamento da entidade foi pelo presidente nacional da OAB, Marcus Vinícius Furtado, em ofício ao ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo. Ele diz que passados quase três anos da divulgação da sentença que condenou o Estado brasileiro, a sociedade e, especialmente, vítimas e familiares, esperam a adoção de providências para seu integral cumprimento.

Calcula-se que sessenta e duas pessoas desapareceram entre 1972 e 1974 na guerrilha do Araguaia, que originou uma guerra suja em plena selva amazônica. Ali, menos de cem homens e mulheres desafiaram a ditadura, sob inspiração da revolução chinesa, e acabaram sendo esmagados. Foi na confluência do Pará com Maranhão e com o futuro Estado do Tocantins, região conhecida como Bico do Papagaio, que o PCdoB implantou o mais importante foco de guerrilha rural que o país conheceu. O movimento apoiava-se na ideia de guerra popular prolongada, seguindo os ensinamentos de Mao Tsé Tung, vitorioso na China em 1949. Desde 1966, militantes do PCdoB foram chegando à área. Montavam venda, farmácia, roça, integravam-se à população de 20 mil pessoas na imensidão da floresta amazônica. O povo era carente, subjugado por grileiros e jagunços, como reconstituiu uma reportagem da edição especial de “Caros Amigos” sobre os anos de chumbo.

Os recém-chegados logo passaram a ser conhecidos como “os paulistas”. Prestam serviços de enfermagem, providenciam remédios e fazem até partos. Já entrando os anos 1970, os “paulistas” organizam acampamentos no meio da mata, viram “povo da mata”. Os espiões da ditadura já sabiam de atividades subversivas no Bico do Papagaio, mas não tinham conhecimento do estágio dos preparativos do PCdoB. Em fevereiro de 1972, obtêm dados inesperados, com a prisão do militante Pedro Albuquerque Neto, que falou sob tortura. Os guerrilheiros se organizaram em três destacamentos. Alguns haviam treinado na China. O Birô Político era composto por João Amazonas, Maurício Grabois e Ângelo Arroyo. Também se destaca na organização Elza de Lima Monerat, a quem cabia conduzir novos combatentes da cidade para o Araguaia.

Os militares deflagraram a operação “Peixe” em 23 de março de 1972, duas semanas depois da prisão de Pedro Albuquerque. Pouco mais de 30 agentes do serviço de inteligência, sem farda, foram ao Bico do Papagaio checar as informações de Pedro, que seguiu com a equipe, obrigado a servir de guia. A maior parte deles se disfarçava de agentes da Sucam, órgão de controle de endemias, outros de funcionários da Embratel e mais outros de funcionários do Incra. Fingindo que pulverizava as casas contra o barbeiro, inseto transmissor da doença de Chagas, ou que escolhia o traçado de novas linhas telefônicas, o grupo entrou em todos os sítios e fazendas da região, espionou, perguntou e confirmou a existência de bases guerrilheiras em Faveiro, a 70 km de Marabá e na altura do quilômetro 72 da Transamazônica, local identificado como “Chega Com Jeito”. Durante as buscas, encontraram grandes depósitos de alimentos, material cirúrgico, uma oficina de rádio bem montada, máquina de costura. Destruíram tudo.

Após outras incursões de reconhecimento, os militares concluíram que o foco da guerrilha englobava uma área de 6.500 quilômetros quadrados, maior que o Distrito Federal. A Operação Peixe logo frutificou. Em poucos dias, nove guerrilheiros foram identificados. Dois militantes que, separadamente, tentavam incorporar-se à guerrilha, foram presos. Em 18 de abril de 72, acaba preso um guerrilheiro muito procurado, de codinome Geraldo: o futuro deputado federal José Genoíno. Levado a Brasília sob torturas, Genoíno deu informações sobre o movimento, mas a partir delas nenhum companheiro foi preso.

Nos dias seguintes, tropas fardadas chegariam à região, sob o comando do general Antônio Bandeira. Os ativistas foram tombando em tiroteios travados. O Exército decidiu promover uma grande manobra na região, a chamada operação Papagaio, maior mobilização militar da história do Brasil desde que a FEB desembarcou na Itália na Segunda Guerra Mundial. Veio, depois, uma ação mais sofisticada, denominada de Sucuri. O extermínio maciço mesmo deu-se com a operação Marajoara, que deixou rastros de torturas e execuções, cabeças cortadas a facão por jagunços atrás de prêmios em dinheiro, corpos insepultos. Guerrilheiro algum voltou vivo do Araguaia para contar o que aconteceu com seus líderes, no natal de 1973.