Gonzaga e o preciosismo

foto

Nonato Guedes

Incorporado às celebrações pelos 80 anos de Gonzaga Rodrigues, o cronista maior, ocorre-me mencionar o preciosismo das suas narrativas literárias. Num depoimento para o “Jornal da Paraíba”, referi-me aos múltiplos dons de Gonzaga, que aprendi a ler em Cajazeiras, quando ensaiava passos no jornalismo e na vida cultural. O preciosismo não está só na forma de dizer as coisas, de contar o que ele viu, mas na eterna busca da perfeição em tudo o que Gonzaga faz. Bastava soltá-lo nas oficinas de nossos jornais impressos para constatar o esmero, o olho clínico que ele punha no que estava diagramado ou já escrito para consumo do leitor.

Falei que em Gonzaga tudo é preciso, metrificado. As palavras se entrelaçam em semicírculo para se harmonizarem no ponto final, que invariavelmente deixa o leitor com vontade de ler mais, de saber mais, pela suspeita de que o cronista deixou escapar casos interessantes colhidos no relicário do seu aprendizado permanente. Estivemos juntos em oportunidades históricas, como na preparação da edição de “A União” sobre os 30 anos do golpe de 64, convertida em livro, com participação de equipe de altíssimo nível. Ele foi um dos colaboradores da revista “Ponto de Cem Réis”, denominação que o próprio Gonzaga atribuiu, fiel ao itinerário lírico que ensaiou durante toda a vida pelo termômetro da capital. Confesso que esses momentos significaram a minha grande chance de beber na fonte, de aprender com quem tem a ensinar.

A cidade crescia, mas a cabeça de Gonzaga estava fixada no Ponto de Cem Réis. Ou no Café Alvear, a respeito do qual cunhou essa definição lapidar: “Alvear foi café. Foi a nossa principal bolsa de notícias, mexericos, piadas de bom ou mau gosto, ponto político e de assuntos culturais até meados dos anos sessenta”. Essa introdução a uma das suas criações já prepara o leitor para as emoções que vai desfiar na leitura instigante, na eloqüência com que ele retrata personagens. Adalberto Barreto citava a obsessão de Gonzaga pela fidelidade aos fatos que narra, sinal equívoco de uma perene busca pelo acerto. Ou pela palavra exata, para definir o que às vezes está ostensivo mas não é percebido nem nas entrelinhas.

Aproximar-me de Gonzaga era algo imperioso para mim, que já havia me enturmado com Severino Ramos, Martinho Moreira Franca, Agnaldo Almeida, Adalberto Barreto, Luiz Augusto Crispim, Carlos Aranha, João Manoel de Carvalho, Jório de Lira Machado, Maria José Limeira, essas figuras sagradas do jornalismo e da cultura na Paraíba. Minha timidez bloqueava o contato. A reverência secreta que sempre nutri por ele era o empecilho, mas no metro quadrado de João Pessoa era improvável que não houvesse o encontro e que a amizade não fosse selada. Deu-se, enfim, o abraço fraterno, e na seqüência, a minha admissão no círculo de admiradores do ourives da escrita, de textos densos encobertos por um estilo que, não obstante, flui com naturalidade e singeleza.

Sei que as influências literárias de Gonzaga vão de Machado de Assis a Lima Barreto, passando pelos grandes nomes da literatura internacional. Mas sou tentado, em algumas ocasiões, a considerar que ele também buscou inspiração num personagem que sempre admirou, o ministro José Américo de Almeida, cujo terraço freqüentou. Com o autor de “A Bagaceira”, Gonzaga aprimorou a arte de dizer tudo numa frase só. De possuir a capacidade da síntese no relato dos fatos ou de situações. Ao evocar João Pessoa de alguns anos passados, Gonzaga, certamente, fotografa a agitação política e cultural, reconstitui na memória os tribunos políticos e populares, as grandes manifestações, a pureza e o idealismo que pareciam confinar-se, estreitar-se, nas franjas da expansão urbanística desordenada, rasgando ruas e avenidas para vivenciar o aconchego da orla marítima.

No que me toca, posso dizer que o pacto que eu buscava ardentemente, o de conviver com Gonzaga mais de perto, foi sacramentado. Hoje, os contatos podem ser rarefeitos, devido à azáfama de cada um. Mas cada reencontro é uma festa, para mim. Porque Gonzaga exala talento, ensinamento. E uma solidariedade que, à distância, eu julgava difícil desvendar. Em momentos de mar de sargaço, não tive dúvidas em recorrer a ele, para ouvir uma frase de conforto, de apoio. Invariavelmente a frase chegava, coroada depois pelo abraço caloroso. Dizer mais o que?