Fui Tinga naquele dia e Tinga sou em todos os dias dessa Vida Severina

1berto de Almeida

Assisti ao jogo entre o Real Garcilaso, do Peru, pela Copa Libertadores da América, e o Cruzeiro, de Minas Gerais, o time do “Macaco” Tinga. Ou melhor: quase assistia. E, se disse “macaco” aí, porque foi assim que os olhos grávidos de um recismo exacerbado dos torcedores peruanos presentes no estádio viram o negro Tinga.

Notei que assim que Tinga entrou em campo o som que chegava pelo meu televisor era diferente. No comecinho não entendia aqueles “ó, ó, ó” seguidos “u, u, u”. O narrador, porém, silenciou e o volume do som que vinha do estádio foi aumentado. Era isso mesmo: estavam imitando um macaco que Tinga nunca foi. Tinga é um homem com seus defeitos e virtudes. Um bom jogador. Nunca um macaco.

Negro nunca será um macaco. Embora saiba que muitos homens, por mais que se esforcem, nunca chegarão a condição desse animal inteligente. Um macaco nunca vai deixar de ser um macaco. E um macaco nunca será esse Tinga que veio da Restinga, o Paulo Cesar, nem 1berto de Almeida, o Humberto de Almeida que veio de Jaguaribe. Um macaco nunca será um Homem.

Sou negro e senti mais por Tinga do que imaginam as autoridades verde-amarelas daqui e de outros campos, onde ninguém chama sua minoria negra de macaco. Ah, solidariedade é ainda é muito pouco. Por lá eles silenciam. Um silêncio que grita. Dói. Embora muitos optem por aliviar a carga racista gritando “macaco” no vazio de suas consciências. .

Naquele momento em que Tinga era chamado de macaco, este escriba estava sendo chamado também. Todos os escribas como este escriba que tem a cor de Tinga ou não. Mesmo aqueles que uma só palavra nunca escreveram um dia, sentiram na pele o racismo e a certeza de que não trocariam a pele que tem por nenhuma outra que não fosse essa que lhe cobre todo o corpo… E alma, mesmo sabendo que essa não tem cor.

O filho de Tinga chorou pelo que aconteceu com o pai, mesmo sem saber o que é racismo. Porém, mesmo assim, assim como todos os Tinga verde-amarelos ou não , todos, nem precisava saber o que era para sentir na pele. A pele tem memória! Ela guarda a história dos ancestrais de Tinga, os meus ancestrais,

O filho de Tinga tem a mesma cor da pele do pai. E, assim como a pele branca, se queimada ele grita e sente a mesma dor. A pele do filho de Tinga sentiu essa dor quando o pai ao entrar no campo foi chamado de macaco na língua dos símios. A língua que torcida peruana nunca desaprendeu. A nossa pele, a pele de Tinga, do seu filho e a minha estavas sendo queimadas.

Depois que consegui traduzir o que a torcida peruana dizia com o nosso Tinga, dizia comigo, irmão de pele e de cor Tinga desliguei o televisor. Saí de campo mais do que nunca convicto de que o homem é um projeto de Deus que não deu certo. Não sei se o Tinga deveria fazer o mesmo. Não o fez. Forte, homem – nunca um macaco -, digno como deve ser todos os Tingas do mundo, todos os homens, continuou dentro de campo. E, mesmo com televisor desligado, tenho a certeza de que dentro do campo continuei com ele. Não adianta. Dentro ou fora de campos serei sempre um Tinga também.