Rubens Nóbrega

Era uma vez uma flor de lótus que vivia num pântano, mas se mantinha limpa e imaculada como a maioria de sua espécie.
Um dia, porém, um respingo de lama caiu sobre uma de suas pétalas e ela não deu maior importância, acreditando que uma ou outra manchinha como aquela seria perfeitamente assimilável.
“Ora, ninguém vai notar. Não vai ser uma laminha qualquer que vai sujar o meu cartaz, enfear a minha beleza, conspurcar a minha pureza”, pensou.
A flor só não contava que outros pingos aconteceriam em sequência e com uma regularidade impressionante. Curiosamente, ela começou a se comportar como se estivesse gostando da novidade e tirando proveito.
Ao final de algum tempo, sem que a flor de lótus tomasse qualquer providência, a nódoa ficou enorme, bem visível e passou a ser alvo de comentários em todo o reino vegetal.
Alguns desses comentários eram maldosos e bem cruéis, é verdade, mas todos tinham alguma procedência.
Preocupada com a repercussão, flor de lótus recorreu ao seu incrível e misterioso sistema autolimpante, algo que a ciência jamais soube explicar.
Dessa vez, contudo, o sistema falhou. Para complicar, a cada mexida das raízes e galhos submersos que se projetavam à superfície para limpar a imundice, a mancha se agigantava e se espalhava.
Pior que tudo, depois de inúmeras tentativas frustradas de eliminar aquela coisa horrível, a flor de lótus incorporou e deu pra exalar todo o fedor do seu entorno.
Ela procurou, então, renunciar à sua condição, pra ver se saia daquele atoleiro. O gesto não surtiu o efeito desejado, todavia.
Em desespero, gritou por socorro. Sua voz foi ouvida por outra flor de lótus que habitava o mesmo pantanal, mas ocupando área num laguinho de água transparente, livre de todo aquele lodo da vizinha infeliz.
– Pelo amor de Deus, ajude-me, que estou ficando cada vez mais suja e sufocando com toda essa catinga – suplicou a flor do pântano.
– Sinto muito, flor, mas, quando chega a esse estágio, é sem retorno. Quando a coisa começa a feder é porque não tem mais jeito – informou a flor do lago.
– Como assim? E nós, flores de lótus, não somos abençoadas pela natureza com uma pureza intrínseca e indelével? Por que minha autolimpeza está falhando? – questionou a flor do pântano.
– Somos abençoadas, sim, amada, mas não podemos abusar. Se você não tivesse deixado se manchar desde o primeiro pingo de lama, aí o sistema funcionaria direitinho e jamais teria avançado tanto – explicou a flor do lago.
– Quer dizer, então, que não tem razão de ser a história de que flores de lótus são uma criação divina para simbolizar a pureza total em meio ao que há de mais sujo e mais sórdido na natureza, inclusive a natureza humana? – perguntou a flor do pântano.
– No princípio foi assim, é verdade, mas depois de um tempo a nossa pureza ficou dependente da nossa própria capacidade de resistir à lama e, principalmente, de quem nos germina, de quem nos bota no mundo – respondeu a flor do lago.
– O que você quer dizer com isso? Quer dizer que fiquei assim por culpa de quem, digamos, me criou, semeou, plantou? – quis saber a flor do pântano, parecendo bastante espantada diante daquela revelação.
– Exatamente, amiga. Se o nosso criador é impuro e indecente, se a nossa origem é pecaminosa e imoral, jamais as nossas pretensas virtudes poderão suplantar os nossos vícios arraigados e com eles feneceremos – confirmou a flor do lago.
***
Dizem que depois daquele diálogo os estômatos da flor pantaneira foram se entupindo gradativamente e causaram três paradas fotossintéticas consecutivas.
Sobreveio falência múltipla dos órgãos, fazendo murchar da haste às raízes.
Hoje, quem passa pelo lugar, se repara no lamaçal e olha direitinho percebe bem no meio, vez por outra, a formação de bolhas.
Uns acham que são os gases do charco. Outros…
Outros acreditam no que reza a lenda: aquele borbulhar vem da flor de lótus submersa. Ela respira por um fio de esperança, na esperança de um dia voltar à tona e desabrochar outra vez.


O colunista errou

Na coluna de domingo último (‘Morrendo pela boca’), escrevi:
– Desse trabalho resultou a atuação de dois bares e a interdição de uma cozinha onde – vejam só! – estaria ocorrendo reaproveitamento de comida.
O correto seria e é:
– Desse trabalho resultou a autuação de dois bares e a interdição de uma cozinha onde – vejam só! – estaria ocorrendo reaproveitamento de comida.
Perdoem a atuação. Seria caso de autuação se a nossa imprensa fosse dotada de um Procon correcional, tanto ético quanto gramatical, particularmente ortográfico.

O povo quer saber
Muda alguma coisa, mudando o candidato?