O fenômeno do bolsonarismo representa um discurso enquanto prática social genuinamente resultante do processo histórico de formação da arcaica mentalidade política brasileira. No Brasil bolsonarista, os mitos mais tacanhos dessa mentalidade aparecem sendo vivenciados como reais na arena política; todas as imagens ideológicas viscerais da formação social brasileira afloradas: o patriarcado, o autoritarismo, o mandonismo[1], o racismo, a exaltação da violência, a homofobia, o fundamentalismo cristão, e sobretudo, dois aspectos que representam um avivamento fascista nesta sociedade: primeiro, uma visão mítica de nação sob um discurso patriótico chauvinista e anticomunista que anuncia a ameaça vermelha do Brasil se tornar uma nova Venezuela; segundo, a visão do outro no campo político, não como opositor que deve ser antagonizado no jogo democrático, mas, ao contrário, como um inimigo (vermelho) que deve ser eliminado e que, diante disso, este patriotismo guia-se pela necessidade mitológica de salvação contra um delirante apocalipse petista. Estamos diante do que a antropóloga Lilian Scharwcz identifica como uma mitologia de Estado, pautada na lógica da polarização do “eles” contra “nós” ou do “nós” contra “eles” – prato cheio para um avivamento fascista. Contudo, essa visão mítica de nação constituída em um invólucro chauvinista, requer uma liderança que encarne esse mito antropomorfizado em um autêntico representante do típico “homem de bem”: sujeito temente a Deus, chefe de família no modelo tradicional, que coloca ordem na casa sob a autoridade do moralismo cristão emplacado no discurso pela ousadia da ignorância, que nega a ética dos direitos humanos e rejeita a racionalidade científica.
A partir do golpe de 2016, temos um momento favorável para que uma nova liderança política pudesse canalizar as pontas soltas deixadas pelo lulismo no campo ideológico; desta vez, sob o retorno do fundo civil autoritário e fascista que continuou se proliferando de maneira silenciosa em cada núcleo familiar brasileiro, mesmo após o fim da ditadura civil-militar. Os militares caíram, mas esse fundo civil autoritário jamais deixou de se reproduzir, pois é a base da formação social do modelo familiar brasileiro historicamente consagrado e ideologicamente renovado pela mítica neopentecostal.
Essa perigosa mitologia social encontrou na figura de Jair Messias Bolsonaro, um autêntico líder enquanto síntese histórica dos mitos que a formação social brasileira produziu como uma mentalidade nacional capaz de magnetizar o elemento neofascista: o avivamento de uma visão mítica de nação, constituída sob um chauvinismo de base ideológica neopentecostal, que se projeta no poder como uma mitologia do Estado de exceção. Na história desse país, a esquerda não conseguiu emplacar uma narrativa histórica junto às massas; porém, nem por isso a história deixou de produzir a sua narrativa mitológica, que agora chegou ao poder na forma de um avivamento fascista. Bolsonaro cumpre a tarefa histórica de nos revelar uma verdade pavorosa: o Brasil já era bolsonarista antes do bolsonarismo.
[1] Segundo Lilian Schwarcz, no seu livro Sobre o Autoritarismo Brasileiro, o mandonismo diz respeito ao fato de que “Mesmo com o fim do Império […], perpetuou-se a imagem dos senhores provedores, diante dos quais era preciso agir com lealdade e submissão. Esse etos patriarcal e masculino foi, assim, transplantado para os tempos da República”.
Wécio Pinheiro Araújo, 36 anos, é doutor em filosofia e professor da UFPB.
Fonte: Wécio Pinheiro Araújo
Créditos: Wécio Pinheiro Araújo