Misoginia?

'Feche as pernas': o que pregam os participantes do 1º Congresso Antifeminista do Brasil

om um público majoritariamente masculino, apesar de a maioria dos palestrantes ser mulher, o evento capitaneado pela ex-feminista Sara Winter

“Boa noite, meu povo!”, disse ao microfone Alexandre Varela, dono do blog de orientação católica O Catequista, para 150 pessoas reunidas no auditório da Igreja de Sant’Ana, no centro do Rio de Janeiro, no começo da noite do sábado 4 de agosto. A resposta protocolar do público, que se espremia nas cadeiras havia quatro horas e já se preparava para a última palestra, permitiu a réplica do blogueiro: “Eu disse ‘boa noite’, meu povo antifeminista!”, gritou, dessa vez recebendo uma ovação que envolveu palmas, gritos e assobios que atravessaram a nave central da igreja, contígua ao salão onde ocorria o 1º Congresso Antifeminista do Brasil.

Com um público majoritariamente masculino, apesar de a maioria dos palestrantes ser mulher, o evento capitaneado pela ex-feminista Sara Winter — candidata de 26 anos a deputada federal pelo DEM, mas que “não estava ali para pedir voto” — foi concebido com o objetivo de reunir a maior quantidade de pessoas contrárias ao que, em um panfleto rosa-shocking na entrada, era classificado como a “desconstrução moral da mulher”.

Em cinco palestras, das 14 horas às 19 horas, o feminismo foi malhado em diferentes formatos e intensidades, com argumentos que pregavam desde sua suposta incompatibilidade com o cristianismo até uma “agenda comunista” que estaria promovendo secretamente. Os palestrantes também apontaram desonestidades praticadas por feministas. Segundo Winter, quando era ativista do Femen, grupo ucraniano conhecido por protestar de topless, foi ensinada a fingir ter sido agredida pela polícia durante manifestações. No evento do “antifeminismo” — que a ex-ativista não define como um movimento, mas uma reação — também foram proferidas críticas menos convencionais. Logo que pegou o microfone, a professora catarinense de história e candidata a deputada estadual Ana Caroline Campagnolo, que sempre declara ser “do mesmo partido que o Bolsonaro” ao citar sua legenda (PSL), afirmou com um sorriso: “Quando comecei minha luta, era impensável ver um auditório assim, cheio de gente, quanto mais pessoas cheirosas e que tomam banho, porque sabemos que o público dos eventos de feminismo é um pouco diferente”.

Mães e filhas, casais jovens, senhoras de terço na mão e idosos, além de rapazes com devocionários e camisetas em apoio ao candidato à Presidência Jair Bolsonaro, ao libertarianismo e ao falecido político conservador Enéas Carneiro, compunham o auditório sob o olhar de Sant’Ana. Na imagem acima do palco, a mãe da Virgem Maria aparece educando a jovem filha com preceitos cristãos, os mesmos aos quais, “como maioria no país, temos o direito de fazer o Estado se adequar”, segundo Campagnolo diria em sua palestra. Antes que o evento começasse, homens uniformizados de verde pareciam vigiar o entra e sai, até que começaram a distribuir panfletos onde se lia “Templários da Pátria”, com a missão de “libertar o Brasil da tirania do comunismo”.

Ainda que o congresso professasse o “antifeminismo” oficialmente, a pauta principal, que motivou a data e a elaboração do encontro, já podia ser reconhecida logo na mesa de identificação. Ao entrar no auditório, os participantes diziam o nome, número de documento e celular “por razões de segurança”, para logo depois encontrarem, espalhados sobre uma mesa de toalha vermelha, pequenos fetos humanos de borracha. Aproveitando que a descriminalização do aborto até a 12ª semana fora tema de uma audiência pública no Supremo Tribunal Federal (STF) no dia anterior, sessão que continuaria na segunda-feira seguinte, os esforços do congresso se concentravam em argumentos contrários à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 442 (a ADPF 442), proposta pelo PSOL. A palavra aborto, no entanto, era frequentemente substituída por assassinato naquela tarde. Com uma hora de atraso, auditório cheio e sistema de som devidamente testado, antes que os argumentos contra a interrupção da gravidez fossem devidamente apresentados, a plateia ficou de pé para as formalidades. Com a ajuda de um padre, os participantes do congresso rezaram o pai-nosso e cantaram o Hino Nacional — o que fez outro dos palestrantes, o estudante de filosofia Felippe Chaves, enxugar os olhos.

Como organizadora do evento, Winter tomou a palavra em primeiro lugar para dar o mesmo testemunho que já proclamou dezenas de vezes em outras igrejas e encontros de cunho conservador. Antes uma militante feminista que chegou a escrever frases a favor do aborto no peito nu, a estudante de relações internacionais disse que o jogo virou quando fez um aborto há quatro anos, o que não proporcionou “um pingo de empoderamento”. Ela, cujo sobrenome real é Giromini, relatou que, após uma infância difícil com agressões por parte do irmão, demorou cinco segundos para se perder nas “garras do feminismo” quando leu a manchete “Feministas protestam de topless na Ucrânia”. “Eu não sabia onde ficava a Ucrânia, mas sabia o que era topless: sou de uma geração fracassada, não é, gente?” Listou então lições que diz ter aprendido com o “treinamento” que recebeu quando foi ao país do Leste Europeu, com passagem paga pelo Femen.

Entre os princípios básicos de uma feminista, de acordo com Winter, estavam não sorrir, mentir em depoimentos policiais, fingir dor ao ser confrontada pela polícia em manifestações — pelo bem das fotografias na imprensa — e entender que, para alcançar a tão sonhada revolução comunista, é preciso passar por cima de todo valor moral. A convivência com as colegas de Femen também levou a ex-ativista a afirmar que jamais conheceu alguma feminista que tenha vindo de uma família “estruturada”, termo que usou sem maiores explicações, e que o ódio aos homens era regra. “Olhe para o homem do seu lado”, disse ela, forçando alguma interação do público, que permanecia atento. Uma senhora com um terço enrolado no braço lançou um olhar desconfiado para o lado, imaginando o que poderia vir em seguida: “O feminismo me ensinou que esse homem aí do seu lado e que todo homem é um estuprador em potencial”, disse Winter, sem mencionar a luta pela igualdade de direitos que o movimento professa.

Depois de realizar um aborto e ter sido “renegada” pelas companheiras feministas quando passava por complicações médicas em decorrência do procedimento, Winter mudou de discurso e lado no espectro político. Se antes a frase “Fora, Bolsonaro” era vista estampada no próprio corpo, hoje ela posa para fotografias ao lado do presidenciável e também apoia outras pautas que identificam o candidato, como a facilitação à posse de armas e o combate à ideologia de gênero. Sua principal bandeira de lá para cá é a luta contra a interrupção voluntária da gravidez, tema que via ameaçado pela discussão no STF, e pelo “direito à vida”, que lembrou sem mencionar dados como os que representantes do Ministério da Saúde apresentaram na primeira parte da audiência pública. Segundo o órgão, a estimativa do Sistema único de Saúde é de que 1 milhão de abortos induzidos aconteçam no Brasil por ano, o que leva 250 mil mulheres à hospitalização e gere cerca de 15 mil complicações médicas. Ainda de acordo com o SUS, nos últimos dez anos mais de 2 mil pessoas morreram por conta do procedimento, e é estimado que uma delas morra a cada dois dias no país, com o grupo de risco envolvendo pessoas de baixa renda que não têm condições de arcar com um procedimento seguro.

Fonte: Época
Créditos: Época