Um grupo de seis blogueiros políticos se reuniu na sede do Google Brasil no Itaim Bibi, bairro nobre de São Paulo, em julho de 2016. Convidados pela empresa, a maioria saiu de Minas Gerais para receber orientações sobre como aumentar seus ganhos com o AdSense, o programa do Google de ‘aluguel’ de publicidade em sites. No encontro, um funcionário da empresa teria aberto uma planilha com um case de sucesso para inspirá-los: o site de direita O Antagonista, que receberia milhares de dólares por dia com anúncios.
Em seguida, os blogueiros receberam dicas de otimização e sugestões de temas que renderiam mais dinheiro no AdSense. Embora o Google não tenha sido explícito a esse respeito, o grupo saiu de lá certo de que uma agenda contra o PT e a presidente da República, Dilma Rousseff, era o caminho para ganhar muito dinheiro. Funcionou. Em agosto de 2016, mês seguinte ao encontro, derradeiro para o impeachment, o faturamento de um dos blogs passou de R$ 25 mil.
Os blogs do grupo surgiram no levante antipetista e surfaram a onda do impeachment, e depois ajudaram a engrossar o coro lava-jatista e bolsonarista. Hoje, alguns não escondem seu apreço por autoritarismo e intervenção militar, tudo regado a boas doses de sensacionalismo e meias-verdades – ou a mentiras inteiras. Entre os exemplos citados pelo ex-blogueiro, estão os sites Diário do Brasil, Jornal do País, Notícias Brasil Online e Pensa Brasil, ainda no ar, e Brasil Verde Amarelo e The News Brazil, hoje desativados.
O Diário do Brasil e o Jornal do País, que seguem no ar com uma agenda fortemente bolsonarista, ainda veiculam anúncios pelo AdSense. São exibidos ao lado de notícias como “General do Exército cogita ‘intervenção cirúrgica’ no país” e “Uma rede de televisão não pode citar o nome do presidente em um caso de morte e não ser punida”. Informações mentirosas, de tom alarmista, conspiracionista ou, no mínimo, bastante questionáveis.
Dos blogs identificados pela nossa fonte, quatro viraram canais de direita no YouTube. O Top Tube Famosos (do mesmo dono do The News Brazil) é o mais bem sucedido deles. Com 851 mil assinantes e vídeos como “Moro muda tudo, tranca Lula de vez na cadeia e enlouquece Gleisi”, ele acumula mais de 150 milhões de visualizações – e fatura, no mínimo, R$ 6 mil por mês com anúncios, segundo calcula o SocialBlade. Ele está entre os canais que mais cresceram no YouTube no ranking Em Alta, que divulga o conteúdo que está bombando no momento, no período eleitoral. O algoritmo recomenda os vídeos campeões de audiência e dá a eles um lugar privilegiado no site, ajudando-os aumentar ainda mais o número de espectadores. O Google deu a ferramenta para que eles lucrassem com anúncios, depois os ajudou a aumentar a audiência. Nada mau.
Como os blogueiros aprenderam a ganhar dinheiro
O ex-blogueiro ouvido pelo Intercept contou que, entre 2014 e 2016, foi convidado a participar de reuniões de um grupo de blogs de direita. Eles trocavam dicas sobre assuntos que estavam bombando, compartilhavam conteúdos uns dos outros e frequentavam os mesmos eventos. Só no Google, segundo ele, foram quatro encontros. Em março de 2016, afirma, começou a trabalhar para um dos sites. “Os assuntos mais comentados [na internet] eram apresentados para nós”, diz.
Cada blogueiro tinha total liberdade para produzir conteúdos quando quisesse, sem rotinas pré-estabelecidas. Eles não combinavam previamente sobre quais temas escreveriam, mas aprenderam rápido que tipo de conteúdo bombava. Na semana seguinte a um dos encontros no Google, a manchete em um dos sites era “Dilma Rousseff foi pega comandando pessoalmente esquema de propina de R$ 48 milhões”, uma notícia claramente falsa – afinal, tal flagrante não existiu.
Os blogueiros também aprenderam como usar as ferramentas do Google para aumentar a audiência, a relevância e, assim, os lucros. Para isso, contaram com o auxílio técnico da empresa. Em novembro de 2016, Denis Rodrigues, na época estrategista de contas e parcerias globais do Google, enviou ao ex-blogueiro um e-mail com dicas técnicas para implementar os anúncios do AdSense em celulares. De novo, o exemplo usado foi O Antagonista. Não é por acaso: para vender a tecnologia, o Google procura exemplos que tenham afinidade com o cliente. E a empresa sabia com quem estava falando.
O ex-blogueiro diz que, ao vir para São Paulo, era Rodrigues quem os recebia na sede do Google. “Denis apresentava para nós os dados dos nossos sites e depois a gente ia ao auditório, onde era a reunião grande em que o Google ensinava a respeito de engajamento, tags, como aumentar os views, assuntos que davam mais cliques.”
Em fevereiro de 2019, Denis Rodrigues foi promovido a gerente dos programas de marketing para a América Latina do Google.
Ao Intercept, um porta-voz da empresa não confirmou as reuniões e nem o envio de orientações. O Google disse apenas que “oferecer aos usuários informações confiáveis é parte da nossa missão” e que tem “políticas claras contra conteúdo enganoso em nossas plataformas de anúncios”. Isso inclui conteúdo perigoso, depreciativo ou enganoso. Pelo jeito, mentir afirmando que Dilma comandava um esquema de propina ou que Lula doou dinheiro ao Hamas é conteúdo que a empresa considera digno de credibilidade.
O Google afirma que não deu orientações relacionadas a palavras-chave, mas apenas à otimização do AdSense. O programa de anúncios, lançado em 2003, gerou mais de US$ 15 bilhões para a empresa só neste ano. Ele permite que donos de site cedam espaço em suas publicações para que o Google venda anúncios. Os lucros, gerados por cliques, são divididos entre o dono do site e o Google. Assim, gerar uma audiência e engajamento não é bom só para o blogueiro, mas também para a gigante da internet.
É tudo automatizado e feito em um piscar de olhos: assim que o usuário acessa um site com AdSense, o sistema o identifica e dispara um leilão de milissegundos nos bastidores entre os anunciantes interessados em exibir anúncios naquele espaço ou àquele usuário. Quem fizer o maior lance entre os que se enquadram nos critérios do momento ganha o direito de se exibir ao usuário.
Assim, as palavras-chave usadas em um texto ou o perfil de um usuário têm o potencial de gerar mais ou menos lucro. Os blogueiros aprenderam isso com o Google. Com O Antagonista como exemplo de sucesso, o grupo entendeu como conseguir mais acessos e dinheiro com posts políticos. E, para turbinar os rendimentos, não importava se a informação publicada fosse mentirosa – bastava que chamasse a atenção.
“Teve notícias contra o PT que nunca foram comprovadas até hoje, como a de que o filho do Lula é dono da [gigante de telecomunicações] Oi. Você já leu coisa desse tipo na internet: ‘O Lula tem uma fazenda no Uruguai’, ‘a Dilma teve um relacionamento extraconjugal’”, lembra o ex-blogueiro. A única constante, fosse a notícia inventada ou não, era ser crítica ao governo petista. “Só tinha uma regra: notícias negativas, contra o PT, deveriam ser publicadas”, disse. “A regra era essa. O Google não ia pedir isso pra gente numa reunião, né? Eles podiam ser gravados. Mas a recomendação era que esse tema era o que mais remunerava.”
‘Era muita grana, não era pouca, né? E em dólar. Quanto pior o governo, maior [a cotação do dólar]. E mais dinheiro pra gente.’
A falta de compromisso com a realidade era combinada com a produção em série de posts. Segundo o ex-blogueiro, o Google recomendou que eles publicassem 20 posts por dia porque, dessa maneira, eles ganhariam mais relevância no buscador e, obviamente, seriam criados mais espaços para veicular os anúncios do AdSense.
Acatando a sugestão, os blogueiros se juntaram em uma rede em que as notícias de cada um eram replicadas em outros sites e espalhadas em suas respectivas páginas no Facebook. Isso ajudava a dar ares de verdade à publicação e fazia o blog subir posições na exibição na busca do Google – o mecanismo considera o número de links para determinada página um critério importante para posicionar um resultado no topo. Quanto mais links apontando para uma página, maior o peso dela em relação às demais.
Deu muito certo. Os acessos aos blogs chegavam à casa dos milhões. Nos momentos de pico, o ex-blogueiro ouvido pelo Intercept tinha 2,6 mil pessoas online em tempo real no seu site. Entre setembro e dezembro de 2016, ele manteve uma média de 7,5 milhões de visualizações por mês em seu blog.
Graças ao AdSense, tamanha audiência era revertida em lucro. Em maio de 2016, ele diz que recebeu do Google R$ 4,3 mil. Em julho, quase o triplo: R$ 13 mil. Um mês depois, R$ 25,7 mil. Era agosto de 2016, mês fundamental para o impeachment de Dilma Rousseff, quando o Senado aprovou o afastamento dela e Michel Temer assumiu a presidência da República.
“Às vezes, chegava a ganhar R$ 4 mil com apenas uma notícia em um dia”, relembrou o ex-blogueiro. “Eu sabia o que estava fazendo, mas quando você está precisando de grana… E era muita grana, não era pouca, né? E em dólar. Quanto pior o governo, maior [a cotação do dólar]. E mais dinheiro pra gente.”
Embora o Google receba pagamentos de anunciantes em real no Brasil, a parte operacional do AdSense é concentrada nos Estados Unidos, de onde saem todos os pagamentos — por isso eles são contabilizados e pagos em dólar. No início do programa, o Google enviava cheques de papel pelos Correios aos parceiros brasileiros. Isso mudou em 2007, quando a empresa adotou a transferência eletrônica. Desde então, basta que o parceiro brasileiro informe dados bancários de uma instituição financeira daqui no sistema do Google para que os depósitos passem a cair mensalmente em sua conta, desde que a receita gerada no mês seja de no mínimo US$ 100.
A mudança de ares na política brasileira afetou os rendimentos do grupo. Notícias sobre o então novo presidente, Michel Temer, não rendiam tanto. “Era o Temer que estava no governo e as notícias, por exemplo, aqueles escândalos em que ele teve que comprar a Câmara duas vezes, não davam views, não dava dinheiro”, diz o blogueiro, em referência às duas votações em que deputados rejeitaram a abertura de processos de investigação contra o emedebista. O ex-blogueiro foi banido do AdSense por violação dos termos de uso – acusado de cometer plágio – no começo daquele ano. Ainda tentou criar outro blog, mas não funcionou. “Eu parei porque não era mais viável economicamente”, conta. Um processo movido por uma figura política petista contra ele também pesou na decisão.
O Intercept entrou em contato com O Antagonista e todos os ex-colegas do blogueiro. Apenas um, o Diário do Brasil, retornou. A resposta foi enviada por Patrícia Carvalho, que disse ter comprado o blog do antigo dono, Luciano Moura, em 2016, e não ter mais contato com ele. Falou, ainda, que não responderia às perguntas porque “não confiamos na linha editorial (anti-Brasil) do The IntercePT (sic)”. Ela disse que não tem contato com outros blogs, não participa de qualquer rede bolsonarista e que jamais recebeu um centavo de dinheiro público.
Mas continua ganhando dinheiro com anúncios. Dos seis blogs do grupo, dois não estão mais no ar. Quatro, inclusive o Diário do Brasil, ainda lucram com anúncios – três com AdSense e dois com o Taboola, uma ferramenta semelhante.
De onde vem o dinheiro
Só no segundo trimestre desse ano, a Alphabet, dona do Google, faturou US$ 38,9 bilhões. 83% desse valor, ou US$ 32,6 bilhões, veio da publicidade. A Google Network, denominação no balanço financeiro do Google que indica os locais de terceiros que veiculam seus anúncios, movimentou US$ 5,3 bilhões, um aumento de 8,4% em relação ao ano passado. Ninguém revela quanto dinheiro o YouTube movimentou, mas Ruth Porat, diretora financeira da Alphabet, disse que o site de vídeos foi a segunda maior fonte de renda da empresa.
Anunciar com os serviços do Google é eficiente porque a empresa combina a montanha de dados que ela tem sobre seus usuários – quem tem um Gmail, faz buscas no Google ou assiste vídeos no YouTube está entregando informações à empresa – para traçar seus perfis e assim oferecer aos anunciantes a possibilidade de anúncios bem direcionados. No AdSense, um anunciante pode, por exemplo, escolher que tipo de site veiculará sua propaganda com base nos temas, nas palavras-chave e no tipo de público que quer atingir – por idade, localização, interesses, gênero e outras informações.
O Google diz, explicitamente, que consegue alcançar pessoas por traços demográficos (“segmentos amplos da população que compartilham traços comuns, como estudantes universitários, proprietários de residências ou pais de primeira viagem”), afinidades (“usando uma imagem geral dos estilos de vida, paixões e hábitos delas”), intenção de compra (“que estão pesquisando e considerando ativamente a compra de um produto ou serviço como o seu”) e grandes eventos (“interaja com usuários do YouTube e do Gmail próximo a importantes acontecimentos, como mudança de endereço, formatura da faculdade ou casamento”).
‘Os anunciantes não só não estão cientes dos sites onde estão seus anúncios, como muitas vezes não sabem o que os sites estão publicando.’
Por alguma razão, o público interessado em conteúdo antipetista e impeachment ficou especialmente atraente para anunciantes em 2016 – por isso, rendia muito dinheiro a quem conseguisse impactá-lo. O ex-blogueiro que conversou com o Intercept disse que, em seu blog, eram frequentes anúncios do Itaú, Bradesco, Magazine Luiza, Santander e Localiza, entre outros.
Hoje, a rede de blogueiros que ainda usa a ferramenta exibe anúncios de empresas como C&A, SafraPay, Uber, Quinto Andar, Reserva, Burger King, Nissan e Magazine Luiza, entre outras. Nós perguntamos a cada uma dessas empresas se elas endossam a linha editorial dos sites em que anunciam, e quase todas deram a mesma resposta: não.
A ignorância é um fenômeno global, como atesta Matt Rivitz, criador da iniciativa Sleeping Giants, que alerta empresas sobre anúncios veiculados em sites problemáticos nos Estados Unidos, como o Breitbart News: “Os anunciantes não só não estão cientes dos sites onde estão [seus anúncios], como muitas vezes não sabem o que os sites estão publicando. Sem saberem, eles apoiam financeiramente sites que empurram de tudo aos leitores, de teorias da conspiração a discurso de ódio”.
Natura, Magazine Luiza, Quinto Andar e demais empresas disseram não endossar o discurso de qualquer canal senão o delas mesmas. As marcas também dizem não apoiar conteúdos que sejam contrários à lei e à ética, divulguem conteúdo desrespeitoso ou promovam desinformação. Só o Magazine Luiza, que terceiriza à Criteo a curadoria dos sites que podem ou não exibir seu conteúdo, disse não ver problema em veicular propagandas no Notícias Brasil Online.
A Nivea disse que “nenhum conteúdo da marca deve ser veiculado dentro de canais que falem sobre temas pré-determinados, como é o caso de política”. Segundo a assessoria, o que houve foi uma “falha tecnológica de distribuição do conteúdo” e eles afirmam já estar tomando as providências necessárias para resolver. C&A, Uber e Burger King não responderam ao nosso contato.
O Google disse ao Intercept que o anunciante não escolhe o site em que anunciará, mas pode vetar determinados conteúdos. Nenhuma das empresas ouvidas pela reportagem sabia que seus anúncios estavam sendo usados para financiar desinformação.
‘Não é um problema só do Google, mas de toda a indústria.’
“O ecossistema da desinformação é movido a ganhos financeiros”, disse ao Intercept Craig Fagan, diretor da Global Disinformation Index, uma consultoria que publicou há dois meses um estudo para quantificar quanto dinheiro da indústria de propaganda online vai para sites que espalham desinformação. O resultado é estarrecedor: US$ 235 milhões em um ano – isso só nos 20 mil sites analisados por ele, o que não inclui o Brasil. A estimativa é conservadora, eles garantem.
Segundo Fagan, a produção desse tipo de conteúdo falso é feita em torno de assuntos que engajam as pessoas – eleições, catástrofes, questões de violência – justamente para lucrar com anúncios.
Para o estudo, o GDI coletou dados de 20 mil sites considerados por eles como propagadores de notícias falsas e desinformação, como o Rt.com, antigo Russia Today, classificado como questionável pelo Media Bias Fact Check.
O GDI oferece uma espécie de consultoria para alertar as empresas e mostrar onde investir melhor o dinheiro com propaganda online. “A melhor maneira de cortar isso é se marcas e outros comprarem espaço de propaganda direto no site. Elas precisam saber com quem estão falando e os riscos que correm e tomar a decisão de não ter anúncios nesse site.”
Segundo o estudo, o Google é responsável por 70% do valor gasto com desinformação. Fagan, no entanto, não culpa só a gigante. “Não é um problema só do Google, mas de toda a indústria”, diz. Ele acredita que, se o Google parar de fornecer esse tipo de serviço, outras empresas ocuparão esse espaço.
Na avaliação de Fagan, o Google é um problema justamente por seu ecossistema que não apenas oferece anúncios, mas ajuda a alavancar a audiência e aumentar a reputação de quem espalha mentiras. E isso acontece não só nos sites, mas também no YouTube, onde os blogueiros conseguiram alavancar mais audiência em torno de seu conteúdo de extrema-direita.
Rivitz, do Sleeping Giants, também não acredita que mudanças significativas partirão das plataformas. “Há muita gente ganhando muito dinheiro para que algo real aconteça. Enquanto não houver transparência, continuará a ser um problema.”
Fonte: The Intercept Brasil
Créditos: Rodrigo Ghedin, Tatiana Dias e Paulo Victor Ribeiro