Atrocidades

Escravas sexuais brasileiras no Japão: 'Queimaram genitais da minha amiga'

Quem conta é Marcela Loaiza, jovem que, assim como outras mulheres latino-americanas - inclusive brasileiras -, foi sexualmente explorada no Japão por uma rede de criminosos que engana as jovens prometendo a elas carreiras bem-sucedidas como modelos ou bailarinas no país asiático.

Elas foram colocadas lado a lado. Eram várias e estavam todas nuas.

Entre uma e outra havia certa distância, para que pudessem cumprir uma ordem: a de esticar os braços e abrir as pernas para os lados.

De repente, caiu algo da vagina de uma delas. Era uma camisinha com dinheiro em seu interior.

“Quando viram o que era, eles queimaram os genitais da minha amiga com um cigarro.”

Quem conta é Marcela Loaiza, jovem que, assim como outras mulheres latino-americanas – inclusive brasileiras -, foi sexualmente explorada no Japão por uma rede de criminosos que engana as jovens prometendo a elas carreiras bem-sucedidas como modelos ou bailarinas no país asiático.

“No dia seguinte, como se nada tivesse acontecido, forçaram ela a seguir a trabalhando. Ela tinha uma cota a cumprir”, prossegue Marcela. “E ali começou uma lei: ‘aquela que descobrirmos que esconde dinheiro terá seus genitais queimados’. Eu não passei por isso, mas assisti. Nunca me atrevi (a esconder dinheiro) porque tinha muito medo.”

Nem ela nem suas colegas recebiam dinheiro diretamente dos clientes.

“Eles sempre pagavam no hotel ou no local onde nos levavam, mas às vezes nos davam gorjetas e até isso (os cafetões) tiravam de nós.”

Como começou o ‘inferno’

Como Marcela foi parar ali? Tudo começou em uma casa noturna em Pereira, na Colômbia. Um homem se aproximou dela, mas não para convidá-la para dançar ou para sair. Ele apenas se apresentou, entregou a ela seu cartão e disse que ela tinha um enorme potencial para se dar bem como bailarina no exterior.

Na casa noturna, Marcela dava aulas de dança e animava festas, como complemento de renda a seu trabalho como caixa em uma loja.

A princípio, a jovem de 21 anos não deu muita atenção à proposta. Mas, quando sua filha de quatro anos adoeceu e teve de ser hospitalizada, ela precisou parar de trabalhar para cuidar da menina. Resolveu ligar para Pipo, como se apresentara o “agente”.

Pipo se mostrou muito compreensivo e ofereceu dinheiro para Marcela pagar os gastos hospitalares da filha. Futuramente, disse ele, Marcela poderia reembolsá-lo com “o dinheirão” que ganharia dançando no país onde “seguramente ela seria contratada”.

Mãe, solteira e de origens humildes, Marcela aceitou. Quando a filha se recuperou e pôde ficar com a avó, Marcela decidiu ir. Mas não contou a ninguém, a pedido de Pipo.

“Só disse à minha mãe que iria a Bogotá buscar trabalho para pagar dívidas”, conta.

Nova identidade

Marcela estava emocionada porque seria a primeira vez que viajaria de avião.

“Eu me sentia a diva de Hollywood que ia mudar de vida”, conta.

Pipo só contou a que país ela iria quando a deixou no aeroporto. “Pouco antes de subir no avião, ao me entregar a passagem, ele falou que eu iria ao Japão.”

O agente entregou a ela também um pouco de dinheiro vivo e um passaporte falso, para “facilitar” sua entrada no novo país.

Foi assim que Marcela viajou como Margaretta Troff.

Ao chegar no Japão, soube que adotaria um terceiro nome: Kelly.

Foi o que lhe contou uma mulher colombiana que a recebeu no aeroporto de Tóquio e a levou para uma casa, para morar com outras mulheres.

No dia seguinte, a mulher explicou a Marcela que seu trabalho seria de “puta”, para pagar a imensa dívida que ela tinha por conta de passaporte, passagem de avião, hospedagem, alimentação, transporte e o dinheiro que Pipo lhe havia adiantado.

Quando Marcela tentou explicar que havia alguma confusão e que chamaria a polícia, a mulher respondeu: “Pode chamar, mas não garantimos que você vai chegar a tempo para o enterro da sua filha”.

E assim, em meados de 1999, nas mãos da máfia Yakuza, começou o pesadelo de Marcela no Japão.

‘Era melhor fazer o que eles mandavam’

A ameaça a sua família desenvolveu em Marcela um medo permanente. Ela começou a se prostituir em uma rua de Tóquio, sempre sob o olhar atento dos captores, que a levavam e buscavam.

“Quando estava na rua, tinha certeza que era melhor fazer o que eles mandavam, porque eu via como eles drogavam as outras meninas (as que se rebelavam). Preferi suportar aquilo do que consumir drogas. Porque elas acabavam se viciando e pedindo para serem drogadas.”

“Conheci uma mexicana, uma venezuelana, várias colombianas e peruanas, muitas russas e filipinas”, lembra.

Foram 18 meses de exploração sexual diária e também de violência física – na forma de pancadas que chegaram a deixá-la inconsciente.

Nesse período, chegou a ver a morte de uma prostituta colombiana a socos e golpes de cadeado, vítima de um grupo mafioso rival.

Marcela pensou em suicídio, mas a lembrança de sua filha a conteve.

“A cada homem (com que fazia programa), eu pedia ajuda. Mas não me entendiam, eram japoneses. Ou, se me entendiam, não se importaram.”

O desenho

Houve um cliente que se apaixonou por ela, ia a todos os clubes de striptease onde ela trabalhava e sempre pedia para fazer programas com ela.

“Eles (clientes frequentes) conhecem bem esse mundo. Sabem que os cafetões nos mudam de lugar. Ele sabia onde eu estaria e me procurava”, conta.

Marcela fez para ele um desenho de uma boneca chorando e setas apontando para um mapa da Colômbia, suplicando ajuda com as poucas palavras que havia aprendido em japonês.

“Era muito complicado. Eu dizia a ele que não queria dinheiro, que queria ir embora, mas ele não me entendia.”

Oito meses e muitos desenhos depois, Marcela finalmente conseguiu fazer o cliente entender que ela estava ali contra sua vontade e que precisava de ajuda.

‘Corri, corri, corri’

Com a ajuda do cliente e de outra companheira, eles começaram a planejar uma fuga. Se comunicavam entre si com pequenos bilhetes, logo destruídos para não deixar pistas.

Um dia, ele deixou uma sacola com roupa e peruca para Marcela buscar em uma lanchonete McDonald’s perto de onde ela fazia programas à época.

“Ele me ajudou, me deu dinheiro, me desenhou o mapa para chegar ao Consulado da Colômbia e me explicou quais ônibus tomar.”

Em um descuido dos homens que a vigiavam, Marcela escapou.

“Corri, corri, corri”, ela conta à BBC News Mundo. Seguindo as instruções do cliente, conseguiu chegar ao Consulado, que a ajudou a voltar para a Colômbia.

Ficava para trás, assim, um de seus maiores medos: o de que, ao pagar sua “dívida”, fosse vendida por seus cafetões a algum outro grupo criminoso japonês.

‘Enganaram mulheres do México ao Brasil’

A ativista japonesa de direitos humanos Shihoko Fujiwara é fundadora da Lighthouse, ONG que combate o tráfico de pessoas no Japão desde 2004.

Ela explica que, quando a economia japonesa passou por um boom, na década de 1970, “os homens japoneses começaram a viajar ao exterior para comprar serviços sexuais de mulheres”.

“Nos anos 80 e 90, o país começou a traficar mulheres das Filipinas, Tailândia, Rússia, Coreia do Sul”, prossegue. E, ao final dos anos 1990 e na década seguinte, “vimos chegarem várias mulheres da Colômbia e de outras partes da América Latina”.

O tráfico de latino-americanas, nessa época, coincide com a internacionalização das atividades da máfia Yakuza, que forjou vínculos com traficantes da América Latina, segundo explicam os jornalistas David E. Kaplan e Alec Dubro no livro Yakuza: Japan’s Criminal Underworld (Yakuza: O submundo criminal do Japão, em tradução livre).

“A Yakuza causou problemas em outras partes da América Latina, particularmente no comércio sexual. (…) Recrutadores de prostitutas e de ‘hostess’ enganaram mulheres do México ao Brasil, para que viajassem ao Japão”, diz o livro.

Em 1996, as autoridades mexicanas desmantelaram uma operação de tráfico de mulheres com fins de exploração sexual que durara uma década, segundo os escritores.

Com um dos recrutadores detidos foi encontrada uma lista com o nome de 1,2 mil vítimas mulheres.

Segundo o depoimento de outra colombiana que foi vítima de exploração sexual no Japão em 1984, ela e outras jovens eram submetidas a jornadas duras, humilhantes e “dolorosas”.

“Levantava para trabalhar às 8h da manhã. Às vezes, eram 2h, 3h da manhã e ainda não havia ido dormir. Tinha que fazer cinco, seis shows diários. Era tão desumano que te convertiam em uma carne, uma carne viva. Via os homens jogando jan-ken-pon (jokenpô, ou pedra papel e tesoura) e perguntava por quê. Elas (colegas) explicavam que era para ver qual deles ia (fazer sexo) comigo primeiro. Era tão doloroso vê-los jogar e fazer fila para mim.”

Em 2017, segundo a polícia japonesa, foram registrados 46 casos de tráfico de pessoas no país – sendo 28 japonesas, 13 de países asiáticos e uma brasileira.

Mas, segundo especialistas, as estatísticas oficiais não refletem a magnitude do problema, uma vez que muitos casos de exploração sexual nunca são denunciados.

Um relatório de 2018 do Departamento de Estado americano afirma que “como se reportou nos últimos cinco anos, o Japão é um país de destino, fonte e trânsito” de tráfico humano.

De um clube noturno a outro

A ativista Fujiwara e membros de sua equipe já visitaram casas noturnas alvos de denúncias de escravização e exploração de mulheres latinas. Descobriram que os cafetões movem essas mulheres a cada dez dias, de uma casa noturna a outra, por todo o Japão.

E, nelas, os clientes que pagarem US$ 20 extras “podem ter relações sexuais com as bailarinas”.

“Eles recebem uma camisinha, uns lenços e têm dez minutos para fazer sexo. Esse tipo de serviço é padrão em clubes de strippers latinas”, conta.

E o sexo é realizado em um pequeno cubículo, do tamanho de uma cabine telefônica.

Fujiwara relatou suas descobertas à polícia, mas, frustrada, diz que muitas das vítimas de tráfico sexual acabam sendo presas sob acusação de prostituição e permanência ilegal no país.

Em vez de tratadas como vítimas, elas são deportadas, diz a ativista. “Não se dão ao trabalho de investigar seus casos.”

Embora ela acredite que o número de latinas exploradas no país tenha diminuído, acha que esse grupo “é o que sofre mais violência, mais exploração e por um tempo maior do que mulheres de outras nacionalidades. Não sei por quê, se é porque tinham que pagar dívidas mais altas (por virem de mais longe). Mas eram muito maltratadas.”

Atualmente, diz ela, tais práticas não são mais vistas, pelo menos em grande escala.

Voltar para casa

O regresso desse mundo não costuma ser fácil.

“Era como ver alguém que esteve ao lado da morte. Ela tinha um medo que transcendia o normal”, conta à BBC News Mundo a brasileira Paula, amiga da jovem Fernanda, que foi explorada no Japão (ambos os nomes são fictícios, para preservar as identidades).

Pouco antes de a amiga voltar para casa, Paula falou com ela por telefone. “Ela soava desesperada, implorava para que eu deixasse ela ficar na minha casa”, conta Fernanda, que mora no Norte do Brasil.

“Disse ‘claro, pode vir’.”

Fernanda ficou um mês na casa da amiga. Até então, elas haviam ficado dois anos sem se ver, depois que a amiga partiu “feliz”, em 2012, rumo ao Japão.

A pessoa que voltou da nação asiática “não parecia a minha amiga. Era outra pessoa, totalmente irreconhecível”.

Fernanda estava mais magra, frágil e muito triste. Mas seu comportamento, e não sua aparência, foi o que mais alarmou Paula.

“Ela se assustava muito com barulhos: o som do telefone ou quando uma porta batia com força. Estava muito desconfiada, se sentia perseguida o tempo todo. Ela me pediu todas as cópias da chave de casa. E tomava banho completamente vestida.”

Só depois que Paula soube que a amiga “tinha voltado do cárcere privado no inferno”.

‘Escultural’

Antes de partir ao Japão, Fernanda era “uma mulher alegre”, conta Paula. “Era uma mulher negra de corpo escultural. Vinha de uma família de classe média alta. Os pais eram profissionais e seus irmãos moravam no exterior.”

Em 2012, Fernanda era uma mãe de dois filhos divorciada. Formada em Administração, ela tinha estabilidade econômica, mas, segundo a amiga, “nunca se interessou em seguir outra profissão que não fosse a artística”.

“Ela sempre sonhou em ser reconhecida como modelo e atriz, em aparecer na TV, em brilhar.”

Fernanda era membro da escola de samba da comunidade e foi ali que se aproximou dela um homem, falando sobre sua agência de modelos no Japão.

“Esse homem ia a todos os eventos da comunidade”, diz Paula. “Prometeu a ela sucesso no exterior.”

Fernanda se apaixonou pelo homem e informou seus parentes e amigos sobre os planos de ir ao Japão.

“Todos falaram para ela dos perigos da prostituição no exterior, mas ela só escutava aquele homem”, afirma a amiga.

Paula saberia depois que o homem mudou radicalmente quando chegou com Fernanda ao Japão.

“Reteve o passaporte dela e a levou a um quarto de hotel com outras mulheres”, diz Paula, relatando o que ouviu da própria Fernanda.

“Naquele momento, ela percebeu que tinha caído em uma armadilha e que o homem que ela amava era parte disso.”

Nos primeiros dias, Fernanda foi levada ao sótão do hotel, onde funcionava a rede de prostituição. Ela contou a Paula que foi “forçada a ter relações sexuais, a se drogar e a beber álcool”.

“Até 2014, ela ficou em uma espécie de cárcere privado, sendo estuprada todos os dias por diferentes pessoas, como uma escrava sexual.”

O trauma

Fernanda não gostava de recordar o período vivido no Japão, e dizia a Paula que “era um pesadelo que não desejava a ninguém”.

Paula não sabe ao certo como Fernanda conseguiu se libertar de seus cafetões – suspeita que a amiga tenha conseguido pagar sua “dívida” e sido deixada de lado.

“Durante a primeira semana que ela ficou na minha casa, fiz de tudo para tentar convencê-la a denunciar tudo às autoridades, mas não consegui.”

Tanto Fernanda quanto a família tinham não apenas vergonha do ocorrido, mas medo de represálias, uma vez que os traficantes tinham bastante informações sobre eles – algo que era frequentemente recordado a Fernanda no Japão.

A vítima chegou a receber atendimento psicológico, mas abandonou-o depois de quatro meses.

Paula percebeu que a amiga passou a beber muito e a usar drogas – mas recusou-se a ser internada para desintoxicação. Além disso, voltou a se prostituir.

“Infelizmente, eu perdi o contato com ela. Os pais, que cuidam dos dois filhos dela, se mudaram se deixar rastro.”

Paula ainda vem tentando encontrar Fernanda pelas redes sociais, sem sucesso até agora. Fernanda desapareceu.

“A última vez que tive notícias dela, ela ainda estava vendendo o próprio corpo.”

A situação no Japão

Entre 2011 e 2017, o relatório do Departamento de Estado americano listou o Japão como um dos países “cujos governos não cumprem plenamente com as normas mínimas da Lei de Proteção para Vítimas de Tráfico de Pessoas”, embora o país asiático tenha mudado de classificação em 2018, ante a mais esforços do governo em erradicar o problema.

No entanto, o mesmo levantamento adverte que muitos dos traficantes sexuais recebem tratamento leniente da Justiça japonesa, “recebendo sentenças pequenas que muitas vezes são suspensas”.

E que em muitos casos as autoridades prenderam, acusaram e deportaram estrangeiros que “fugiram de condições de exploração (impostas) pelos agenciadores que os contrataram, em vez de terem seu caso investigado e remetido a serviços de proteção”.

Os especialistas e ativistas ouvidos pela BBC News Mundo concordam que reformas legais para penalizar o tráfico de pessoas, além de novos controles e políticas migratórias, tornaram mais arriscado e menos rentável para máfias envolvidas no tráfico e exploração sexual de estrangeiras no Japão.

“Por isso, os traficantes estão cada vez mais usando crianças e mulheres japonesas em situação de vulnerabilidade”, explica Fujiwara.

De vítima a ativista

Marcela Loaiza já escreveu livros sobre sua experiência e, com apoio da ONU, viajou a diferentes países latino-americanos para dar palestras em escolas, universidades, órgãos judiciais e consulados sobre tráfico humano.

Ela também fundou uma organização que leva o seu nome e apoia sobreviventes do tráfico na Colômbia e nos EUA.

“Às vezes as pessoas são muito cruéis com as vítimas”, explica. “Minha mãe levou cinco anos para entender o que era tráfico humano. Ela me julgava, dizia que eu me fazia de vítima, e isso me causou muitos problemas.”

Isso só foi revertido com a busca de apoio psicológico para toda a família.

E, embora os especialistas consultados pela BBC concordem que o número de vítimas latino-americanas de tráfico no Japão tenha diminuído consideravelmente desde a década de 2000, a dinâmica internacional de tráfico sexual e de pessoas segue vigente – e o continente asiático em geral segue sendo um destino de mulheres vulneráveis.

Fonte: Bol
Créditos: Bol