Estive há duas semanas acompanhando um bate-papo entre uma escritora e um quadrinista com alunos de um colégio público da periferia de Salvador. Em certo momento, a pergunta: quem ali já havia lido algum escritor negro? Dos cerca de 100 estudantes de ensino médio presentes, uns 80 eram negros, estimo. Para minha surpresa, a resposta dada pelos jovens foi um silêncio sepulcral. Tudo bem, a molecada poderia estar um pouco intimidada, poderia não ter prestado atenção nas aulas, poderia ter esquecido dessa informação… Vamos dar esses descontos. Ainda assim, chamou a atenção que nenhum estudante tenha tascado um Machado de Assis, nem que fosse só para impressionar os colegas.
Logo, é mesmo necessária uma campanha como a que a Faculdade Zumbi dos Palmares iniciou neste mês de maio. O movimento Machado de Assis Real recriou uma clássica imagem na qual o autor de “Dom Casmurro” aparece um embranquecido para reaver tanto o tom de pele quanto os traços negros de Machado. “Sua foto oficial, reproduzida até hoje, muda a cor da sua pele, distorce seus traços e rejeita sua verdadeira origem”, entende o movimento, que vê a iniciativa como “uma errata histórica feita para impedir que o racismo na literatura seja perpetuado”, o que pode “encorajar novos escritores negros” – as palavras estão no manifesto publicado no site da campanha.
Machado de Assis Real convida as pessoas a imprimir essa nova imagem do escritor para colá-la sobre fotos que historicamente buscaram deturpar a verdadeira cor do Bruxo do Cosme Velho. Além disso, a iniciativa está angariando assinaturas para um abaixo-assinado que pede que editoras e livrarias deixem de imprimir, publicar e comercializar livros em que o autor aparece embranquecido. No Instagram, pessoas que aderiram à iniciativa estão compartilhando a nova foto de Machado com a hashtag #MachadodeAssisReal.
Nascido em 1839, Machado viveu boa parte de sua vida numa sociedade escravocrata e precisou ter traquejo para lidar com a profundamente racista elite do país. Olhando para sua literatura, são muitos os que o consideram não apenas o maior de nossos escritores, mas o maior de todos os gênios brasileiros. Daí a importância de se corrigir o racismo histórico e mostrar a todos como Machado realmente era: um gênio negro de biografia complexa, que tanto retratava quanto eventualmente manifestava as condições e contradições da sociedade de sua época.
Se nossa sociedade já reconhecesse amplamente Machado de Assis como um escritor negro, provavelmente o silêncio naquele colégio de Salvador não aconteceria. São grandes as chances de que todos aqueles alunos já tenham ouvido falar sobre o autor de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, mas será que o identificam como negro? Só que é capaz de logo aparecer alguém por aí dizendo que ensinar nas escolas que Machado de Assis não era branco se trata de doutrinação ideológica ou qualquer estupidez do tipo.
Fonte: UOL
Créditos: Blog Página Cinco