Se os meios de comunicação tivessem passado a operar como partido unificado, com o intento de sabotar a administração pública, o que nós teríamos no Brasil seria um abalo semelhante ao que se viu na Venezuela em 2002. Ali, houve um conluio escandalosamente golpista dos meios de comunicação que, por meio de informações falsificadas, tentou derrubar o presidente Hugo Chávez, eleito democraticamente havia pouco tempo. Por fortuna, a quartelada mediática malogrou ridiculamente. Por escassez de virtú, Chávez passaria todo(s) o(s) seu(s) governo(s) se vingando das emissoras que atentaram contra ele.
No Brasil, não tivemos nada parecido. Nossa imprensa, convenhamos, é preponderantemente de direita e, muitas vezes, apresenta falhas de caráter, algumas inomináveis, mas nunca se perfilou com a organicidade de um partido político. Por todos os motivos, a acusação continuava sem pé nem cabeça.
Mas o fato é que começou a colar e o cenário começou a ficar esquisito. Agora, as inspirações até então submersas daquela campanha anti-imprensa afloram com mais nitidez. Era um recurso para dar tônus à disposição dos cabos eleitorais (de muitos níveis), para inflar o ânimo dos militantes de baixo e para inflar o ego dos militantes de cima. Agora, chegamos ao ponto de dizerem que os repórteres deram de ombros para a cocaína encontrada no helicóptero da família do senador Zezé Perrella (PDT-MG) porque ele, embora esteja filiado a um partido da base governista, teria lá suas inclinações consideradas pouco fiéis. Difícil saber. As mesmas vozes acusam os mesmos repórteres de terem exagerado na cobertura do julgamento do mensalão. Na falta de uma oposição de verdade que pudesse servir de vilã cruel, na falta de um satanás mais ameaçador para odiar (a “herança maldita” de FHC não funciona mais como antagonista imaginária), querem fazer valer essa ficção ufanista de que o País vai às mil maravilhas, só o que atrapalha a felicidade geral é esse maldito partidarismo da imprensa. A tese pode ser doidona, mas está funcionando. Alguns quase festejam: “Viva! Achamos um inimigo para combater! Vamos derrotar os editores de política deste país!”.
Deu-se, então, um fenômeno estranhíssimo: as forças instaladas no governo, como que enfadadas do ofício de governar, começaram a fazer oposição à imprensa. Dilma Rousseff jamais embarcou na cantilena, o que deve ser reconhecido e elogiado, mas está cercada de profetas que veem em cada redator, em cada fotojornalista, uma ameaça ao equilíbrio institucional.
A oratória petista depende de ter um antagonista imaginário. Sem isso, parece que não para mais de pé. Sim, temos aí um traço de discurso autoritário. Em todo regime autoritário ou totalitário, a figura mais essencial é a do inimigo. Para os nazistas, esse inimigo estruturante foram os judeus. Para o chavismo, foi o imperialismo, encarnado por Bush, que teria cheiro de enxofre. E mesmo Bush só conseguiu salvar seu mandato do fiasco porque lhe caiu no colo o inimigo chamado terrorismo. É claro que não se pode dizer que o PT atualmente se reduza a um discurso tropegamente autoritário, mas as feições autoritárias e fanatizantes desse discurso vão ganhando densidade a cada dia. Não obstante, está assentado em bases fictícias, completamente fictícias.
Vale frisar este ponto: sem um inimigo para chamar de seu, esse tipo de ossatura ideológica se liquefaz. O que seria dos punhos cerrados dando soquinhos no ar sem o auxílio luxuoso do inimigo imaginário? O que seria dos sonhos de martírio em nome da causa? O que seria das fantasias heroicas e do projeto ambicioso de virar estátua de bronze em praça pública?
Foi aí que a imprensa entrou no credo. Na falta de outra instituição disposta a não se dobrar ao poder, disposta a desconstruir os cenários grandiloquentes armados pelas autoridades, eles encontraram na imprensa a sua razão de viver e de guerrear. Só assim, só com seu inimigo imaginário bem definido, esse discurso encontra seu ponto de equilíbrio: ficar no poder e ao mesmo tempo acreditar – e fazer acreditar – que está na oposição, que combate um mal maior. Seus adeptos, que imaginam odiar a imprensa sem se dar conta de que a temem, agarram-se à luta com sofreguidão. Estão em ponto de bala para o ano eleitoral de 2014. O Estado de S.Paulo