O Estado de S.Paulo
Eu que, felizmente, tive um pai até ser pai, sabia que papai estava ao meu alcance. Mas o tal Papai Noel levantava uma paternidade estacional. Ele só aparecia no final do ano e, a seu lado, surgiam também as figuras santificadas e concretas do Menino Jesus, de São José e da Virgem Mãe. Um amigo dizia que era preciso escolher entre gastar movido pela “propaganda” ou rezar num verdadeiro e escrupuloso Natal. Eu até hoje fico impressionado com a fácil moralidade de plantão.
A Sagrada Família era pobre mas Papai Noel tinha um trenó puxado por renas – estranhos veados grandes que, além do mais, voavam. Ademais, ele entrava nas casas pela chaminé. Eis um detalhe que completava o seu exotismo, porque as casas onde morávamos não tinham chaminé – tinham cafuas e porões. À ansiedade dos presentes, sempre aquém do meu desejo, havia a dúvida porque, afinal, éramos “crianças” e Papai Noel pertencia ao universo dos “grandes”. E os adultos sabiam de coisas secretas, como a tal cegonha que, no meu caso, durante sete ou oito anos, trouxe, embrulhado numa fralda, um irmãozinho que me roubava carinho, atenção e espaço…
Camelos, cegonhas e chaminés eram elementos que compunham o mistério dessas figuras periódicas.
Ao escrever essas recordações natalinas, descubro porque, quando visitei o Cairo, Egito, para tomar parte numa ambiciosa conferência de antropologistas, usei a oportunidade para observar os camelos. Diante das pirâmides, eu olhava e perguntava sobre os camelos. Tocava-os, admirava sua capacidade de resistir a sede e tinha curiosidade sobre suas corcovas. Camelo ou dromedário? Uma ou duas corcundas? Eis uma pergunta que não quer calar diante de certas pessoas, sobretudo dos que me governam. E foi assim que, diante da velha Esfinge, eu edipiana e estupidamente paguei para dar uma volta num velho camelo e, mais que isso, tirei uma fotografia. O guia ria e repetia “Lawrence da Arábia”, mas eu estava vivendo um dos reis Magos…
Do mesmo modo e pela mesma lógica, essa também ligada ao meu amigo e companheiro de toda a vida, um rapaz chamado Édipo, jamais perdi a fascinação pelas chaminés que estudei, medi, admirei e olhei com fascinação nas casas europeias e américas. O fogo dentro de casa era uma contradição na minha vida de brasileiro cuja família vinha de uma Manaus, de uma Salvador e de uma Niterói nas quais o calor era “de matar” e o risco de algo “pegar fogo” era constante. Como, pois, ter essas chaminés com um fogo caseiro que servia para aquecer, quando só falávamos em ventilação e sonhávamos com o hoje rotineiro e transformador “ar condicionado”?
Papai Noel descia ou entrava pela lareira e eu jamais deixei de espiar escondido para o interior tenebroso das lareiras americanas. E se o bom velhinho fosse o amante da dona da casa, como questionou meu ciumento pai diante da estupefação de seus irmãos e cunhados? Mais que isso, como descer pela chaminé sem se sujar, conforme estabelece uma famosa e intrigante parábola judaica?
O fato antropológico, porém, é que o fogo da lareira contrasta somente em parte com o da cozinha. Os dois se fundem. E produzem uma fumaça humana reveladora de vida. Pois a fumaça que tinge os céus já escuros e frios dos invernos gelados que hoje eu conheço tão bem, seja no norte ou no sul, é o triunfo do calor que resiste ao frio imutável do infinito. Parece com o fósforo lutando inutilmente com o quarto escuro no qual vivemos.
E assim é o Natal. Uma noite de luz na imensa escuridão de nossas vidas. Uma pausa para reconhecer nos próximos o seu amor e a sua paciência para conosco. As rotinas realçam mais o feio e o raso do que o belo e o profundo. Mas o Natal dos “amigos ocultos” e das trocas de presentes redime o outro que está em todos os nossos próximos e, quem sabe, dentro de cada um de nós.
Feliz Natal