A opinião é do especialista em desigualdade e educação Ricardo Paes de Barros, economista-chefe do Instituto Ayrton Senna e professor do Insper.
“Sem nivelar o ponto de partida das pessoas, fica meio absurdo querer nivelar o ponto de chegada”, avalia ele, para quem o Brasil evoluiu muito na igualdade de oportunidades nos últimos 20 anos, seja na educação, no acesso à terra ou ao crédito. “Mesmo assim, nossa desigualdade de oportunidades ainda é lamentável.”
Crescimento econômico não reduz a desigualdade. Por quê?
O crescimento é naturalmente desigual. Ele tende a gerar desequilíbrios intersetoriais e inter-regionais. Uma parte vai crescer mais rápido que outra. Certas ocupações vão explodir, outras nem tanto. A área urbana vai crescer mais que a rural.
O crescimento, quando todas as demais variáveis são constantes, tem tudo pra gerar desigualdade. A China cresceu um monte nos últimos anos, e a desigualdade por lá cresceu loucamente. Já o Brasil cresceu bem menos e a desigualdade caiu. Os países ricos cresceram, mas a desigualdade também.
A vantagem do crescimento é que ele permite ao país criar políticas sociais. Um país mais rico pode ter um sistema de redistribuição de renda melhor porque há mais recursos fiscais para isso.
Quando o crescimento não gera desigualdade?
O fundamental é partir da igualdade de oportunidades. Ou seja, todo mundo pode adquirir competências, independente de sua origem familiar, e pode usar essas competências da melhor maneira possível. Um país em que uma parte da população tem acesso a boa educação, crédito e terra, e a outra parte não, vai ter desigualdade. Vai crescer quem teve acesso a essas coisas.
O Brasil tem feito investimentos em igualdade de oportunidades?
A desigualdade de oportunidade no Brasil caiu muito nos últimos 20 anos, na educação, no crédito ou no acesso à terra. Mesmo assim, estamos muito mal preparados para o crescimento porque nossa desigualdade ainda é lamentável.
Hoje, no Brasil, quase não há diferença no analfabetismo entre brancos e negros. Na educação superior, os negros estão encostando nos brancos. Mas, quando olhamos a pós-graduação, a diferença entre eles está aumentando.
E, como hoje o que vale é ter um MBA, percebemos que a gente equaliza oportunidade no que não é mais vanguarda, que não fará grande diferença.
As famílias mais ricas estão de olho naquilo que vai dar uma vantagem real.
Como equalizar essa vantagem real?
Se você ajustar na primeira infância, fica mais fácil. Porque é difícil dar igualdade de acesso à universidade para um cara que teve desigualdade na primeira infância. É um efeito dominó.
O país tem que garantir também a liberdade para que todo mundo possa usar as competências que desenvolveu. Não adianta um negro fazer medicina e depois não conseguir exercer porque a sociedade discrimina um médico negro.
Igualdade de oportunidade e liberdade são suficientes para reduzir a desigualdade?
Não. Porque isso é cada um por si. E a sociedade tem de remendar aquilo que o capitalismo não nasceu para fazer. Cada um teve sua renda —parabéns, mérito, seu—, mas agora é preciso taxar e distribuir para quem se aposentou, é muito pobre ou muito jovem.
Na Suécia, a desigualdade era bem alta. O capital na Suécia está extremamente mal distribuído. Mas o governo diz: “Sua profissão está muito valorizada, você desempenha muito bem. Parabéns! Agora, eu vou taxar uma boa parte disso”. A riqueza taxada é usada para beneficiar quem ficou fora desse desenvolvimento. É assim que se constrói uma rede de proteção social.
O Brasil tem uma rede de proteção social?
Gastamos cerca de 20% do PIB com política social. Mas alocamos mal porque gastamos mais com transferências e menos com equalização de oportunidades.
E não adianta só fazer o remendo a posteriori se eu não dei condições iniciais similares. Sem nivelar o ponto de partida fica meio absurdo querer nivelar a chegada.
Qual o tamanho da proteção social brasileira?
Ela é mega. O dinheiro que vai por meio de FGTS, seguro desemprego, Bolsa Família, abono salarial e salário família equivale a 50% da soma da renda do trabalho de metade dos trabalhadores mais pobres do Brasil.
Se o governo focasse esses recursos nos mais pobres, eles teriam, em vez de 12, nada menos que 18 salários por ano. Ou seja, daria para aumentar em 50% a renda de metade desses trabalhadores mais pobres.
Quais os problemas com o sistema atual?
Nossa rede é generosa, mas não muito inteligente. Tem aspectos inteligentes do Bolsa Família e do FGTS. No seguro desemprego não tem nada inteligente.
O importante seria juntar todos os benefícios numa única rede, ao invés de ter um amontoado de programas.
Quais as consequências disso?
De que adianta dar proteção fantástica para alguém que não teve uma boa escola e foi discriminado a vida toda? Claro, depois de tudo isso, é melhor fazer a transferência [de recursos]. Mas, para as próximas gerações, o importante é equilibrar as oportunidades. Na primeira infância tivemos avanços com a expansão de creches. Avançamos nas questões racial e de gênero, mas temos um longo caminho.
Como podemos sair de um ciclo de alto desemprego, queda de renda e baixo crescimento? Eu não acredito em crescimento intervencionista, em que o governo vai dar dinheiro para o pobre, que vai comprar um monte de coisas. É uma coisa keynesiana, que gera crescimento do nada.
A falta de crescimento vem do fato de a sociedade brasileira gerar um ambiente de negócios desfavorável, com uma política tributária incompreensível, uma política trabalhista complicada, uma Justiça que, no lugar de ser uma garantia dos meus contratos, é mais incerta que os contratos que eu faço.
É preciso estabilidade política, trabalhista, fiscal e legal para gerar crescimento. E estar na vanguarda tecnológica. É a capacidade empreendedora e inovadora de milhões de pessoas que faz o país crescer.
Como diminuir a desigualdade quando não há crescimento?
Os 10% mais pobres do Brasil têm 1% da renda ou menos. Vamos combinar que é muito fácil proteger 1% da renda, logo, é possível a um país que sofre uma crise proteger os 10% mais pobres.
Talvez isso esteja acontecendo no Brasil hoje. Com programas de alimentação, que atacam os 10% mais pobres, a renda deles fica garantida.
Mas a pobreza tem aumentado no país.
São novos pobres que podem não ter hoje cobertura da rede de proteção social. Quem não era pobre, como um trabalhador semi-qualificado da indústria que perdeu o emprego, pode ter entrado na pobreza e, por isso, sofreu mais que os velhos pobres. Mas, se dermos aos novos pobres assistência técnica, oportunidade de criar negócios, uma inclusão produtiva, no menor sinal de crescimento eles vão sair da pobreza. No meio tempo, temos de transferir renda para eles.
Fonte: Folha de S. Paulo
Créditos: Fernanda Mena