Desde a largada o desafio do balde de gelo transformou-se numa corrida ao pote da famosidade

Um pastelão filantrópico

Dorrit Harazim, O Globo

129_2411-pete-frates 1

Desde a largada o desafio do balde de gelo transformou-se numa corrida ao pote da famosidade

Não é apenas o Rio que produz a cada verão uma nova cota de fofocas, modismos, separações e paixões de famosos, segredos suculentos.

O verão no Hemisfério Norte também produz sua cota de falsas crises e fomento para tabloides. No mês de agosto, sobretudo, com a criançada de férias, os governos quase parados e a temperatura chegando a picos máximos, qualquer tolice bem turbinada tem chance de adquirir status de fenômeno viral.

Foi o que ocorreu com uma iniciativa beneficente de propósito claro e sério, mas lançada num formato de desafio-pastelão que caiu nas graças dos habitantes das redes sociais. A ideia original de Patrick Quinn e Pete Frates, dois jovens americanos que sofrem da doença degenerativa esclerose lateral amiotrófica (ALS, na sigla em inglês), também conhecida como doença Lou Gering, para a qual não existe cura, foi postar vídeos chamativos e bem-humorados no Facebook sob o hashtag #IceBucketChallenge.

A dupla quis dar visibilidade máxima a uma doença ainda bastante clandestina, além de arrecadar fundos para impulsionar as pesquisas voltadas a uma hipotética cura e, de quebra, injetar algum alento aos pacientes condenados a aguardar a progressiva morte.

Para popularizar a campanha, a dupla criou um desafio sob medida para quem olha o mundo através do que vê nas redes sociais. Cada participante tem 24 horas para doar US$ 100 à Associação Americana de ALS ou despejar um balde de água gelada sobre a própria cabeça — tudo filmado em vídeo e postado na internet, é claro. Se quiser, o participante também poderá fazer as duas coisas. Mas, seja qual for a sua escolha, ele terá de “desafiar” outra pessoa para fazer o mesmo, também no prazo máximo de 24 horas. A ideia é garantir a continuidade da corrente.

Desde a largada o “desafio” transformou-se numa corrida ao pote da famosidade. Mesmo para profissionais de grosso calibre e zelosos de sua imagem social como Mark Zuckerberg, Jeff Bezos (Amazon), Tim Cook (Apple) ou Bill Gates, não houve como escapar, sobretudo quando “desafiados” por personalidades do peso de um Bill Clinton, Larry Page (Google) ou George W. Bush.

Era previsível que os dependentes do número de “curtidas” em suas contas no Twitter ou Facebook aderissem com avidez. Mas a participação maciça de atores, músicos, políticos, celebridades do mundo da moda e do esporte foi ainda maior. De Gisele Bündchen a Roger Federer, passando por Michael Jordan, Cristiano Ronaldo, Neymar e Messi, a improvisada corrente da felicidade foi engrossando. A notícia da participação de Anna Vintour, a temida czarina da revista “Vogue”, retratada como peste no filme “O diabo veste Prada”, gerou uma das uma das maiores expectativas. E La Vintour, de fato, surpreendeu permitindo que sua marca registrada — o corte Chanel com franja — ficasse encharcado. Comentário mordaz postado no Facebook: “Deve ter sido a primeira vez na história da humanidade que nos foi possível ver o cabelo de Anna Vintour fora de lugar.”

Para salvação da espécie e do bom senso, o presidente dos Estados Unidos achou melhor se ocupar dos distúrbios raciais em casa e dos conflitos movediços no Iraque, Síria, Gaza e Ucrânia, em vez de querer parecer “cool” e ter um balde de gelo jogado sobre a cabeça.

Obama havia aceitado o “desafio” público recebido da quase nonagenária Ethel Kennedy, a viúva de Bobby Kennedy, mas preferiu ater-se a uma doação. Fez bem. Não custa lembrar que William Henry Harrison, um de seus antecessores na Casa Branca, pegara uma pneumonia no dia da posse e acabou morrendo 32 dias depois. É bem verdade que ele havia discursado durante duas horas e meia na cerimônia inaugural, ao ar livre, num dos dias mais frios do inverno de 1841.

Também o Departamento de Estado manteve alguma distância desse frenesi de verão. Por recomendação de seu corpo jurídico proibiu todos os embaixadores de participarem da campanha. A intenção é não vincular a Chancelaria americana a nenhuma operação filantrópica sobre a qual não tem controle. Fez bem, por sinal, visto o número de arapucas pseudocaritativas que vêm sendo denunciadas ultimamente. Da mesma forma, o Departamento de Defesa dos Estados Unidos vetou a participação no movimento de qualquer homem ou mulher vestindo uniforme americano.

Para os criadores da campanha, o lado animador é que a Associação Americana de Combate à ALS coletou um total de US$ 1,35 milhão só nas duas primeiras semanas de agosto, salto colossal em relação aos esquálidos US$ 22 mil recebidos no mesmo período no ano passado.

Já a meta de conscientização da doença, de suas manifestações, tratamentos paliativos, expectativa de vida média do paciente, índices de ocorrência (15 casos diagnosticados diariamente nos Estados Unidos), sua característica universal — ela afeta igualmente negros e brancos, pobres ou ricos —, tudo isso aflorou pouco nos depoimentos dos participantes. George W. Bush, sempre imprevisível, foi um dos raros que recomendaram a seus seguidores para que se informassem sobre a doença no site da ALS.

Difícil imaginar algum tipo de convocação coletiva exitosa que não dependa do volume de “curtidas” , da quantidade de vídeos compartilhados e do grau de autocongratulações virais dos participantes. Mas para pelo menos para uma família paulista de Itu, região metropolitana de Sorocaba, a modalidade foi reformatada com criatividade e humor. Com água à míngua desde o início da estiagem que castiga a cidade há meses, a parentela transformou o “desafio do balde de gelo” num duelo de canecas, mangueiras, torneiras e vasilhames secos. O vídeo fez quase tanto sucesso quanto a versão original.

 

Dorrit Harazim é jornal