Desabafos de notáveis

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Nonato Guedes

O sociólogo Gilberto Freyre (foto) e o economista Roberto Campos tiveram algo em comum: foram congressistas, desiludiram-se com votos minguados para se reeleger e com limitações impostas pelo Parlamento e registraram, em discursos memoráveis, esse sentimento de desalento com a práxis política. As duas peças retóricas, de inestimável valor, compõem o livro “Discursos Históricos Brasileiros”, de Carlos Figueiredo, sob a chancela da Editora Leitura. Freyre, o mestre de Apipucos, ensaiou a cerimônia do adeus no dia oito de dezembro de 1950, quando concluía seu mandato como deputado federal por Pernambuco. “Uma das vantagens dos que morrem nas batalhas simplesmente eleitorais, sobre os que tombam sem vida nas batalhas de fogo e de sangue, é que o morto político pode fazer com a própria voz o autonecrológio”, iniciou Freyre, com a sapiência e a ironia peculiares.

Freyre dizia ter sido arrastado à liça eleitoral pelos moços do Recife – estudantes, comerciários, operários, e foi candidato sem pedir votos nem cortejar eleitores. Alguns puristas do estudo, conhecedores da vocação intelectual de Freyre, insinuavam que no Congresso ele só tinha perdido o tempo. E o mestre respondia: “Enganam-se! Aqui também se estuda o Brasil. Aqui também se descobre o Brasil. Aqui também se aprende a conhecer da natureza humana regiões que de outro modo se conservariam ignoradas dos estudiosos. Nós, deputados, somos todos fatias ou retalhos da chamada realidade brasileira, recortados do todo como para exame de laboratório; somos portadores de micróbios característicos menos de cada um de nós do que de nossas regiões e áreas de origem; somos amostras, exemplos, somos síntese de subgrupos e de sub-regiões que compõem a contraditória realidade brasileira”.

O sociólogo narrou ter desapontado os políticos de carreira com uma vitória inesperada e talvez imperdoada. Vitória de alguém que não corria atrás do sucesso eleitoral. E, após outras considerações, Freyre arrematou: “Está feito, Senhor Presidente, o necrológio do morto eleitoral que deixa esta Casa honrado pelas atenções que aqui recebeu dos seus companheiros de representação, enriquecido pelas amizades que aqui formou entre brasileiros de várias regiões do Brasil, ilustrado pelas lições que aqui aprendeu. E que vai concluir exclamando: “Ave, Câmara!”. Mas “Ave, Câmara” anticésar, antidespotismo, antitirania, seja de quem for, inclusive, a pior de todas, que é a dos plutocratas. O cesarismo econômico, o cesarismo financeiro. O cesarismo do dinheiro. Ave, Câmara anticésar: os que morreram nas eleições de três de outubro te saúdam”.

Já Roberto de Oliveira Campos, economista, pensador e diplomata, participante da Conferência de Breton Woods que criou o Banco Mundial, e apelidado de entreguista pelos setores mais à esquerda no espectro brasileiro, chegou a ministro do Planejamento no governo Castello Branco e foi responsável pela criação do Banco Nacional de Desenvolvimento e FGTS. Despediu-se da Câmara Federal em 28 de janeiro de 1999. E chamou o discurso de retrospecto melancólico. A melancolia não provinha de saudades antecipadas de Brasília, que Campos considerava um bazer de ilusões e uma usina de déficits, e, sim, do reconhecimento do fracasso de toda a sua geração em lançar o Brasil numa trajetória de desenvolvimento sustentado. “Continuamos longe demais da riqueza atingível e perto demais da pobreza corrigível”, entoava.

A melancolia resultava, igualmente, da constatação do que ele denominava de insuportável mesmice reinante no Brasil. E exemplificava: “Quando cheguei ao Congresso em 1983, eleito senador pelo Mato Grosso, os temas cardeais do momento eram a moratória e a recessão. Dezesseis anos depois, quando me despeço de dois mandatos de deputado federal pelo Rio de Janeiro, os temas inquietantes voltam a ser recessão e crise cambial. Isso demonstra que o Brasil, conquanto capaz de saltos de desenvolvimento, não aprendeu a tecnologia do desenvolvimento sustentado. É um saltador de saltos curtos, e não um corredor de resistência”. Irônico, Campos frisava ser discutível o seu papel histórico, lembrando que alguns o chamavam de profeta sem carisma e outros o qualificavam como idiota da objetividade. “O mundo está, felizmente, cada vez mais parecido com minhas ideias”. Freyre e Campos não eram exceções. Muitos que chegam ao Parlamento logo se desiludem com ele, seja qual for a razão. O que é lastimável para a democracia!