Naquele momento a jornalista Thaís Oyama, então redatora-chefe na revista Veja, percebeu estar diante de uma grande história: contar os bastidores de um governo liderado por um político que, segundo ela avalia, é mais carismático e causa mais devoção nas pessoas do que Luiz Inácio Lula da Silva, outro fenômeno eleitoral e histórico.
Durante o primeiro ano da gestão Bolsonaro, Thaís recorreu ao entorno do núcleo do presidente, entrevistando políticos, militares e pessoas próximas à família. Descobriu detalhes, manias, e um modo às vezes imprevisível de se governar um país, muitas vezes movido à paranoia.
Nesta entrevista ao UOL, a jornalista conta detalhes deste trabalho, sua relação com o clã Bolsonaro e também curiosidades que não entraram no livro, que chegou às livrarias do país nesta sexta (17).
UOL – Quando foi que você decidiu escrever o livro? Houve uma motivação maior?
Thaís Oyama – Decidi em outubro [de 2018], quando ficou claro que ele [Bolsonaro] podia ser presidente, mesmo. Me pareceu um coisa tão inacreditável, que imaginei que fosse render uma boa história.
Até o último minuto estava todo mundo muito resistente à ideia de que de fato nós teríamos como presidente o Jair Bolsonaro. Mesmo diante dos números as redações resistiam, e teve um momento em que isso [a vitória de Bolsonaro] ficou muito claro. Era uma coisa que não estava no radar de muita gente até aquele minuto.
Você entrevistou Bolsonaro antes da eleição dele, não?
Eu não só entrevistei como acompanhei ele em viagens, e fiquei muito impressionada com o que eu vi. Pouca gente estava notando o que era aquele fenômeno. O que eu vi me impressionou, porque em anos de cobertura política, inclusive nas eleições do Lula, eu nunca tinha visto uma devoção, uma recepção como aquela que ele teve nos vários aeroportos que eu o acompanhei.
Era uma coisa espetaculosa, extraordinária, o jeito que as pessoas falavam com ele, olhavam para ele, eu nunca tinha visto nem com o Lula, que era uma espécie de mito também.
Há quem diga que Bolsonaro é o “Lula da direita”. Você acha que faz sentido?
Acho que em termos de mitologia, a impressão pessoal que ele causa, o carisma que de fato ele tem, eu concordo com isso. Aliás eu acho que ele ultrapassa o Lula. O Lula, depois de solto, parece que a aura dele arrefeceu um pouco.
As pessoas, os apoiadores, de fato amam ele [Bolsonaro]. Mesmo os ex-aliados, pessoas que hoje estão rompidas com ele, ainda usam esse tipo de expressão, sabe? “Eu amo o capitão, eu tenho amor pelo Bolsonaro”. Ele causa esse tipo de coisa, é uma pessoa carismática e muito sedutora.
Essa devoção fica clara em vários trechos do livro. Uma coisa que chama a atenção são os casos de pessoas que o idolatram, como Bebianno e Santos Cruz, mas são escanteadas por algum motivo. Você acha que Bolsonaro se dá conta de que está de certa forma traindo essa devoção?
Eu acho que há dois fatores importantes nestes desligamentos do governo. Tem o fator Carluxo, o Carlos Bolsonaro de fato é um elemento desagregador, que foi responsável por vários afastamentos, como esses citados, mas eu acho também que tem uma escolha dele [Bolsonaro].
Ele se elegeu apoiado, aconselhado e de alguma forma assessorado por um grupo.
Esses fiéis cabos eleitorais de antigamente, os generais que se uniram para alicerçar o governo dele, por um momento ele teve essas pessoas. E daí, a impressão que eu tenho é que ele foi virando outra coisa, ele não queria mais ser o capitão entre os generais, não queria ouvir críticas.
Essas eram as pessoas que o criticavam, velhos amigos que tinham liberdade para dizer coisas. Eu senti que, no exercício do poder, ele foi se afastando daquelas pessoas e foi se aproximando das pessoas que, de certa forma, mais bajulavam do que criticavam.
Ficaram de fora os generais, esse grupo de aliados fiéis, e ele foi se aproximando de outro grupo, que prefere mais adulá-lo.
Ele trocou a autocrítica pela bajulação, então.
Vejo isso claramente. Vejo que ele assumiu [o mandato] como um homem inseguro, como um homem que não estava à altura do cargo. Por isso ele rapidamente se cercou de gente e era muito claro no sentido de dizer, “olha, vou precisar do seu conselho general”, “vou precisar dos seus conselhos, ministro”, no caso do STF (Supremo Tribunal Federal).
Para superar essa insegurança, ele foi se cercando de pessoas que diziam que ele era ótimo.
Voltando aos bastidores do livro, o entorno de Bolsonaro é avesso à imprensa, a vê como inimigo. Como foi para você driblar esse cerco?
Eu tentei até o último instante não pisar em terreno minado. Por exemplo, eu não pedi entrevista para os filhos, porque meu receio era de que eles fechassem as portas. Mesmo com o próprio presidente, eu só pedi entrevista no último momento. Fui tentando agir com discrição, para não despertar as “feras” e evitar que eles determinassem o fechamento das portas, o que eu acho que aconteceu só no final.
A entrevista com Bolsonaro, por exemplo, foi cancelada na última hora, e foi a conselho dessa turma “mais barra pesada”.
Mas fica claro no livro que você teve acesso a pessoas bem próximas do presidente.
Eu tive muita sorte e fui muito ajudada por pessoas muito próximas dele, tanto do círculo da família quanto do círculo do Planalto. Devo muito a essas fontes.
Nas tentativas de desqualificar o seu livro, críticos dizem que ele foi “psicografado”.
O que a gente poderia falar? Eu até achei muito lisonjeiro o comentário que ele fez (Bolsonaro afirmou que se Thaís vivesse no Japão, morreria de fome). Se ele teve que apelar para argumentos dessa natureza, significa que ele não tinha outros melhores, se a ideia era desqualificar o livro.
Foi uma manifestação típica de Bolsonaro, na verdade me sinto honrada, muito reconhecida. Eu estou muito segura, ele mais do que ninguém sabe que aquilo tudo é verdade.Tem um trecho no livro que fala do apartamento do setor Sudoeste de Brasília, quando Bolsonaro ainda era um nome fora do páreo, em que Bebianno e Julian Lemos, entre outros colaboradores, tiravam dinheiro do bolso para ir a Brasília e dormiam em colchões no chão. É uma visão quase romântica, deles acreditando em uma causa, como uma banda de rock.
É uma comparação muito boa (risos). Se tivesse me ocorrido antes eu teria usado no livro. Era exatamente isso, parecia um band leader seguido pelos fãs, que faziam trabalho voluntário.
É impressionante esse tipo de devoção que ele desperta. Vi isso em todas as pessoas [entrevistadas], ele conseguiu catalisar uma gente muito bem-intencionada como ele, ele é um cara bem-intencionado.
Ele conseguiu catalisar, com essa boa intenção dele, muita gente voluntária, que botou dinheiro do bolso, Bebianno e Lemos não foram os únicos, as pessoas botaram dinheiro para pagar avião, transporte, comida, santinho. Todo mundo estava lá numa causa, e acho que muitas dessas pessoas hoje estão se sentindo traídas.
Você acredita em uma intenção pura de Bolsonaro com sua candidatura, que não se resume a um projeto de poder, de derrubar a esquerda?
Dentro desse projeto de poder dele tem essa leitura, de que para fazer com que o Brasil cresça, e para fazer do Brasil um grande país, é necessário derrubar a esquerda, essa é a convicção dele.
Mas por trás disso tem um sentimento muito genuíno e muito autêntico do que ele chama de patriotismo, um desejo muito grande e verdadeiro de melhorar o Brasil. Acho que isso que fez com que tanta gente se juntasse a ele, as pessoas notaram essa autenticidade nas propostas dele, por mais equivocados que fossem os meios que ele propunha para chegar a elas.
Só para ficar claro, como você avaliou sobre procurar a família, procurar Bolsonaro, para o que no jornalismo chamamos de “outro lado” da reportagem?
Os três filhos eu preferi não procurar por uma questão estratégica e com medo de que as portas se fechassem. O presidente sempre foi até receptivo, como a gente tinha tido esse contato anterior. Ele sabia que eu estava fazendo esse livro e nunca se manifestou nem contra nem a favor.
Quando eu pedi a entrevista, ele foi muito receptivo, marcou imediatamente, mas teve o episódio da cirurgia [Bolsonaro passou por uma correção de hérnia em setembro de 2019] e a entrevista foi remarcada. No dia, eu estava em Brasília e poucas horas antes recebi a notícia de que a entrevista tinha sido cancelada e apurei que tinha sido por conselho da turma do chamado “Gabinete do Ódio”.
Sobre Carlos Bolsonaro. O presidente tem três filhos, mas você resolveu dedicar um capítulo apenas a ele. Por quê?
Ah, porque sem sombra de dúvida ele é o mais influente, que de fato alterou os rumos do governo. Os outros até também, mas por motivos involuntários, mas o Carlos de fato teve um protagonismo principalmente nos primeiros seis meses. Eu vi como era forte a influência dele, inclusive sob um aspecto emocional sobre o pai.
Embora ele esteja agora recuando das redes sociais, se manifestando menos, esse laço, essa influência no aspecto emocional sobre o pai é uma coisa avassaladora. Por todos os relatos que eu ouvi, ele de fato é uma pessoa que o Bolsonaro ouve, talvez não por considerá-lo um grande conselheiro, mas por motivos afetivos, inclusive de culpa.
Qual seria a razão para esse sentimento de culpa?
Os relatos que eu ouvi apresentam o que está no livro, que ele teve esse episódio de ele [Carlos] apoiar o pai em detrimento da mãe, naquela eleição municipal no Rio, e a mãe acabou não sendo eleita. Ele tem essa fragilidade emocional, talvez psíquica, o que faz com que o pai tenha receios e o trate de forma diferente em relação aos outros filhos.
O livro passa a impressão de que Bolsonaro realmente acredita muito em Carlos, de forma praticamente irreversível.
Pesa o fato de ambos terem a mesma característica, que é a de que os dois têm esse fraco por teorias conspiratórias. Eles têm isso de forma muito acentuada, é impressionante a facilidade com que o presidente acredita em qualquer coisa que soe como uma conspiração.
Isso explica muito sobre a demissão de Bebianno, a demissão de Santos Cruz, os hábitos dele [Bolsonaro] de não tomar água da geladeira, olhar embaixo do carro, de desconfiar de todo mundo, é um traço muito forte na personalidade do presidente. E o Carlos, de alguma forma, compartilha desse traço, então os dois se reforçam. Quando junta as duas cabeças, as teorias conspiratórias vão a “grau dez”.
Como foi para você fazer perguntas sobre o caso Queiroz no círculo de Bolsonaro?
O círculo dele mesmo é o primeiro a dizer que o Queiroz é um homem de Jair Bolsonaro. Eu sinto não ter podido ter ido além disso, pois eu teria que investir só nesse segmento, e o livro se propõe a descrever os bastidores do primeiro ano do governo Bolsonaro — ia acabar sendo o “livro do Caso Queiroz”.
No círculo mais íntimo do presidente eles dizem abertamente que o Queiroz era um homem do presidente e que Flávio Bolsonaro está na verdade prestando um favor para o pai, como um escudo. No círculo deles isso é tão sabido que ninguém tem coragem de desmentir.
Esse episódio do Queiroz determinou os rumos do governo. Assim como Carlos Bolsonaro determinou o rumo nos primeiros seis meses, esse caso do Queiroz determinou os rumos desse primeiro ano sem dúvida nenhuma. E pelo jeito deve continuar influenciando os rumos desse governo em 2020.
Lula, logo que saiu da prisão, chamou Bolsonaro de “miliciano”, numa menção a esse caso e ao caso Marielle Franco. Você fez uma escolha de não entrar nesse assunto?
Falei com gente muito próxima do círculo de Bolsonaro e tenho a absoluta convicção de que isso é uma fantasia pura, esse negócio de Marielle. Ele [Bolsonaro] sempre teve relação com a milícia, e a milícia sempre foi base eleitoral não só dele como de todos os três filhos dele no Rio de Janeiro. O escritório do Flávio Bolsonaro sempre foi um ponto de encontro de milicianos.
Os milicianos estão com os Bolsonaros e não é desde ontem, mas nesse contexto. Uma relação espúria evidentemente, mas eles sempre tiveram e consideram normal, até porque sempre tiveram a tese de que “bandido bom é bandido morto” — mas para ele [Bolsonaro], essa relação tem outros contornos.
Essa história de que alguém da família tem relação com a morte de Marielle, posso dizer que não encontrei ninguém que tenha algum indício que isso tenha ocorrido, ou que acredite nisso. Isso não existe, é uma fantasia.
Voltando à questão do começo do governo, Bolsonaro foi pressionado pela suposta inaptidão ao cargo. O livro mostra como o presidente rapidamente ganhou capital político no fenômeno das eleições, de deputado do baixo clero a postulante à Presidência. Como você observa essa mudança?
A principal mudança foi a dos grupos que ele se cerca. Um ponto que não mudou nada é o jeito dele, mesmo. Estive em muitas viagens e momentos informais dele, e ele sempre foi muito afável, as pessoas próximas adoram, motorista, segurança, ele trata essas pessoas com igualdade, se preocupa se o cara comeu. E esse tipo de comportamento ele manteve.
No Planalto, — isso não está no livro —, ele mandou os garçons pararem com o serviço à la carte, e a família se levanta para se servir. Quando ele recebe alguém ele retoma o serviço, mas no dia a dia não tem isso.
Por exemplo, para assistir ao futebol. No domingo, ele assiste lá na cozinha do Planalto, junto com o copeiro. Esses hábitos ele manteve.
E o entorno dele, mudou?
A turma dele era basicamente os generais, aquela turma que veio com ele desde a campanha, e agora a turma dele é essencialmente o grupo das redes sociais, da comunicação do governo, Tércio, Fabio Wanjgarten. Ele ficou muito refém das redes sociais, é uma coisa que afeta muito o Bolsonaro.
Eu já tinha terminado a apuração do livro, mas uma coisa que tenho certeza é que aquela hashtag “Bolsonaro traidor” o deixou muito abalado. A opinião das redes sociais para ele é muito importante.
O trecho do livro que trata do mês de maio mostra que houve ali uma crise institucional séria. Você acha que o país esteve à beira de um golpe naquele momento?
Acho que não, mas o que aconteceu foi que as pessoas se convenceram de que sim. Um senador chegou a me falar assim: “Nós só tínhamos dúvidas sobre se as Forças Armadas iriam referendar o golpe, mas não tínhamos dúvida de que havia um golpe em curso”. Houve várias reuniões de senadores e o ambiente era esse, “tem gente tramando um golpe e a gente só não sabe quando e de que forma isso vai acontecer”.
Teve uma intenção aqui e ali, mas não foi uma coisa organizada. Ao menos não consegui detectar.
Um detalhe para ficar claro: quando falamos sobre golpe, seria um golpe contra o Bolsonaro ou de autoria de Bolsonaro?
No Senado, a convicção era de que haveria um golpe partindo do vice [General Hamilton Mourão]. Uma convicção que eu acredito que foi fomentada. Dentro do Palácio do Planalto, havia gente que defendia que o próprio Bolsonaro tomasse a iniciativa. Tinha esses dois movimentos, digamos assim, e Bolsonaro sempre foi um enigma.
Depois do livro, o que você passou a conhecer sobre os Bolsonaros?
Eu passei a conhecer um homem que tentou vencer uma insegurança com os meios errados, sabe? Ele poderia ter tido nesse percurso um processo de engrandecimento, mas não foi isso que aconteceu.
Ele tentou vencer aquela insegurança dele na marra, passando por cima de críticas em vez de se engrandecer e governar sem as ideologias, obsessões e fantasmas que ele trouxe quando assumiu. Acho que isso ainda pode acontecer, mas o que aprendi foi isso, um homem que não se engrandeceu no cargo, que perdeu essa oportunidade, de fazer um governo melhor do que ele.
Você fala dos hábitos paranoicos de Bolsonaro, medo de ser envenenado etc. E você? Mudou algum hábito depois do livro, ficou preocupada com sua segurança, vida pessoal?
Não, nem com segurança nem com xingamentos. Não estou na rede social, então podem xingar à vontade que eu não vejo nada, não me afeta de maneira alguma.
Houve alguma preocupação de que houvesse tentativa de censurar o livro?
A editora tomou precauções. Ela pensava em lançar o livro em formato eletrônico antes do impresso, por exemplo, mas recuou pensando nisso. Se houvesse uma ação judicial seria mais difícil lançar em papel. Então, teve sim. Mas acho que isso não deve acontecer.
Fonte: UOL
Créditos: Marco Britto e Diogo Schelp