Concursados, comissionados, terceirizados e emprestados

Guilherme Ferraz

Procurador da República. É mestre em Direito Previdenciário pela PUC-SP.

A força de trabalho de que se utiliza a administração pública, por mandamento constitucional, deveria ser predominantemente composta de servidores concursados de carreira, com formação profissional especializada, sujeitos a critérios de avaliação de desempenho e progressão, sem prejuízo da reserva de alguns cargos de caráter estratégico (por exemplo, para assessoramento especializado de certas autoridades) para os chamados servidores comissionados, de livre nomeação. Mas todo mundo sabe que, após mais de vinte anos de vigência da carta Magna de 1988 gestores públicos estaduais, municipais e federais insistem em distorcer essa estrutura, transformando órgãos públicos em cabides de comissionados para todos os tipos de função, típicas de carreira ou de mero apoio administrativo.

Não satisfeitos, alguns gestores ainda abusam de contratações temporárias de excepcional interesse público, que exigem um processo seletivo mais simplificado e geram vínculo precário com a administração, bem como dos ditos “servidores terceirizados”, ou “prestadores de serviço”. Estes últimos, que deveriam ser recrutados por meio de empresas privadas para prestar serviços mais simples e repetitivos para o governo (vigilância, limpeza, reformas, etc), acabaram abarrotando os órgãos públicos, premiados após curtas folhas de serviços ao gestor (como cabos eleitorais, é claro) Nesse aspecto, o Tribunal de Justiça da Paraíba recentemente começou a reconhecer a procedência de ações diretas de inconstitucionalidade intentadas pela Procuradoria-Geral de Justiça contra diversas leis municipais que autorizam tais distorções em todo o Estado.

O inchaço da máquina pública com essa força de trabalho, que deveria ser excepcional, tem causado apreensão nos que, mesmo aprovados em concursos públicos altamente concorridos, acabam preteridos na convocação para nomeações ,enquanto as necessidades da administração são supridas, normalmente de forma sofrível, por aquele contingente precário.

O Superior Tribunal de Justiça – STJ  vinha aprofundado a análise desses casos em sua jurisprudência, reconhecendo o direito a efetiva nomeação dos que estiverem aprovados em concurso dentro do número de vagas, quando demonstrada a existência de cargos vagos e a contratação de terceirizados para suprir carências, chegando a evoluir até uma proclamação desse direito de forma ampla, não mais condicionada ao exame da suficiência de quadro funcional (afinal, se houve concurso para tantas vagas, é porque a administração precisa de tantos servidores).

Este posicionamento acabou confirmado ontem pelo Supremo Tribunal Federal – STF, ressalvando-se ainda situações excepcionais supervenientes, devidamente justificadas.

Vale salientar que o STJ tem diferenciado hipóteses em que os candidatos não estão contemplados dentro do número de vagas e quando não resta demonstrada a efetiva existência de cargo efetivo vago, mas já chegou a reconhecer direito à nomeação para candidata inserida em cadastro de reserva diante da contratação temporária para exercício de idênticas funções. Por outro lado, recusou reconhecer tal direito quando são utilizados servidores cedidos por outros órgãos públicos sem ônus para o cessionário (vide notícias abaixo).

Portanto, o candidato que se encontre em tais situações e pretende acionar o órgão público para obter sua nomeação deve atentar para essas nuances jurisprudenciais, assim como os gestores devem se conscientizar do papelão que fazem quando promovem concursos alimentando esperanças de candidato para depois preteri-los diante da comodidade de contemplar alguns amigos de fé e camaradas correligionários.

Não acho que se deva generalizar a visão negativa de comissionados, terceirizados e emprestados, quando se sabe que existem, dentre estes, bons profissionais que até se esforçam por contribuir para a causa pública. Por outro lado, existem os concursados que pensam apenas em se pendurar no serviço público pela estabilidade com menor esforço e, certamente, não resistiriam a uma adequada avaliação de desempenho funcional.

Ocorre que a Constituição Federal já traz a receita certa para que esse caldo não azede e entorne: selecionar rigorosamente os ingredientes humanos, remexer tudo com a motivação e cobrança na medida certa, e acrescentar algumas pitadas de espírito público. Pena que muitos gestores públicos prefiram o arroz com feijão do clientelismo e ineficiência de sempre, que obrigam o cidadão a engolir em seco a falta de atendimento ou amargar a má prestação do serviço, seja por pessoal concursado, comissionado, terceirizado ou emprestado.
Cadastro de reserva x terceirizados (03/07/2011)

Candidatos aprovados em concurso público têm direito à nomeação se demonstrarem a existência de trabalhador temporário exercendo a função para a qual concorreram? O STJ entende que o direito líquido e certo à nomeação só ocorre quando o candidato for aprovado dentro do número de vagas oferecidas no edital do certame.

O Tribunal já havia decidido que a administração pública não pode contratar funcionários terceirizados para exercer atribuições de cargos para os quais existam candidatos aprovados em concurso público válido, dentro do número de vagas oferecidas em edital. Nesses casos, os candidatos têm direito líquido e certo à nomeação. A controvérsia persistiu quanto à ocupação precária dessas vagas enquanto houvesse candidatos aprovados em concurso fora das vagas previstas. No ano passado, a Terceira Seção decidiu, por maioria de votos, que a nomeação dos aprovados nesses casos não é obrigatória.

A tese foi fixada no julgamento de um mandado de segurança impetrado por diversos candidatos aprovados para o cargo de fiscal federal agropecuário. A maioria dos ministros entendeu que não é a simples contratação temporária de terceiros no prazo de validade do certame que gera direito subjetivo do candidato aprovado à nomeação. “Impõe-se que se comprove que essas contratações ocorreram, não obstante existissem cargos de provimento efetivo desocupados”, explicou o ministro Arnaldo Esteves Lima, relator do processo (MS 13.823).

A hipótese foi tratada novamente no início de 2011, em um julgamento na Primeira Turma. Uma candidata aprovada em terceiro lugar para o cargo de fisioterapeuta da Polícia Militar de Tocantins foi à Justiça para ser nomeada. Como foram oferecidas apenas duas vagas, ela ficou em cadastro de reserva. A candidata alegou que tinha direito à nomeação porque a administração pública necessitava de mais servidores, o que ela demonstrou apontando a existência de funcionário terceirizado exercendo a função. O relator do caso, ministro Humberto Martins, explicou que a existência de trabalho temporário não abre a possibilidade legal de nomeação, pois não ocorre a criação nem a desocupação de vagas. Segundo a jurisprudência do STJ, o candidato inscrito em cadastro de reserva possui mera expectativa de nomeação, que passa a ser um direito somente após a comprovação do surgimento de novas vagas durante o prazo de validade do concurso. (AgRg no RMS 32.094)

Em outro processo semelhante, no qual se discutia a nomeação de professores do ensino fundamental em Mato Grosso, a Segunda Turma decidiu que a contratação temporária fundamentada no artigo 37, inciso IX, da Constituição Federal, não implica necessariamente o reconhecimento da existência de cargos efetivos disponíveis. “Nesses casos, a admissão no serviço ocorre não para assumir um cargo ou emprego público, mas para exercer uma função pública marcada pela transitoriedade e excepcionalidade, devidamente justificada pelo interesse público”, afirmou o relator do caso, ministro Castro Meira. (RMS 31.785)

Expectativa de concursado vira direito à nomeação se contratação temporária revela vaga (26/07/2011)

 

A mera expectativa de direito à nomeação, por parte de candidato aprovado em concurso cujo prazo de validade ainda não venceu, transforma-se em direito subjetivo de ser nomeado quando a contratação de servidores temporários comprova a necessidade da administração em preencher vagas existentes. Com essa consideração, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) confirmou decisão do ministro Napoleão Nunes Maia Filho e garantiu a nomeação de uma candidata ao cargo efetivo de médica oftalmologista na Universidade Federal Fluminense (UFF).

A candidata entrou na Justiça do Rio de Janeiro alegando que, apesar de ter ficado em terceiro lugar no concurso público, foi preterida pela administração, que contratou, em caráter temporário e excepcional, profissionais médicos para a prestação de serviço no Hospital Universitário Antônio Pedro – entre eles um oftalmologista.

Segundo a defesa da candidata, a contratação precária de servidores temporários dentro do prazo de validade do concurso transforma a mera expectativa de direito à nomeação em direito líquido e certo, pois comprova a existência de vagas e o interesse público no seu preenchimento.

O Tribunal Regional Federal da 2a. Região (TRF2) não reconheceu o direito, afirmando que a candidata não foi preterida. “A contratação temporária de médico oftalmologista, levada a efeito pela administração por meio de processo seletivo simplificado (Lei 8.745/93), realizado dentro do prazo de validade do certame anterior, não gera preterição, a qual só ocorreria se tal medida tivesse sido adotada em uma circunstância distinta, em que se constatasse a existência de cargo público de provimento efetivo vago”, afirmou o TRF2.

Ao examinar recurso especial da candidata, o relator, ministro Napoleão Maia Filho, reconheceu que ela tem razão em sua pretensão de ser nomeada. Segundo o ministro, a habilitação em concurso não cria, para o aprovado, o imediato direito à nomeação, mas somente uma expectativa de direito. “Por outro lado, caso haja omissão ou recusa na nomeação de candidato devidamente aprovado em concurso público, cujo prazo ainda não expirou, e se ficar comprovada nos autos a necessidade da administração em preencher vagas existentes, este passa a ter direito subjetivo a ser nomeado”, ressaltou.

O relator deu provimento ao recurso em decisão monocrática. A universidade entrou com agravo regimental contra a decisão, mas, como já existe entendimento pacífico sobre o assunto no STJ, a Quinta Turma manteve a posição do ministro. “A manutenção de contratos temporários para suprir a demanda por médicos oftalmologistas demonstra a necessidade premente de pessoal para o desempenho da atividade, revelando flagrante preterição daqueles que, aprovados em concurso ainda válido, estariam aptos a ocupar o cargo – circunstância que, a teor da jurisprudência desta Corte Superior, faz surgir o direito subjetivo do candidato à nomeação”, concluiu o ministro.


Cessão de servidor sem ônus para o órgão público não viola direito de concursado à vaga (01/08/2011)

Não há violação a direito líquido e certo de candidato aprovado em concurso se a vaga é ocupada por pessoa cedida sem ônus para o órgão público. O entendimento é da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que negou recurso em mandado de segurança impetrado por uma candidata que passou em primeiro lugar para o cargo de escrevente judicial do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul (TJMS), no fórum da comarca de Bandeirantes.

A concursada alegou que o fato de um agente administrativo da prefeitura local ter sido designado, dentro do prazo de validade do certame, para exercer a função para a qual ela foi aprovada demonstra a necessidade do serviço público e a existência de vaga, configurando ofensa ao direito líquido e certo de quem passou no concurso. Apesar de ter sido nomeada depois da impetração do mandado de segurança, ela requereu as verbas relativas ao exercício do cargo, retroativamente à data de propositura da ação. A relatora do recurso no STJ, ministra Maria Thereza de Assis Moura, observou que, segundo acórdão do TJMS, embora esteja exercendo a função de escrevente judicial em virtude de cessão, o servidor da prefeitura não foi nomeado para o cargo, nem está recebendo seus vencimentos dos cofres estaduais, pois o município de Bandeirantes assumiu o ônus da remuneração. A ministra invocou o entendimento consolidado na doutrina e na jurisprudência para afirmar que, em regra, os aprovados em concurso público não têm direito subjetivo, mas apenas expectativa de direito de uma nomeação, que se submete ao juízo de conveniência e oportunidade da administração.

O edital do concurso de Mato Grosso do Sul não estabelecia número de vagas. “Essa expectativa de direito, contudo, é transformada em direito subjetivo à nomeação do aprovado se, durante o prazo de validade do concurso, for contratado outro servidor a título precário para exercer as mesmas funções do cargo para o qual o candidato foi aprovado, bem como se preterido o candidato aprovado na ordem de classificação”, disse a relatora, citando a Súmula 15 do Supremo Tribunal Federal. Maria Thereza de Assis Moura destacou ainda que, caso aprovado dentro do número de vagas previsto pelo edital, a expectativa de direito do candidato torna-se direito subjetivo à nomeação para o cargo a que concorreu e foi classificado, tendo em vista os princípios da lealdade, da boa-fé administrativa e da segurança jurídica, bem como o fato de que a criação de cargos depende de prévia dotação orçamentária.

No caso, entretanto, a relatora entendeu que não houve preterição da concursada, pois o que ocorreu foi cessão de servidor do município ao Poder Judiciário, sem ônus algum para o Tribunal sul-mato-grossense. “Não tendo sido demonstrada a ofensa a direito líquido e certo da concursada, não há falar em reconhecimento de efeitos retroativos no caso”, concluiu a ministra, que negou provimento ao recurso, no que foi acompanhada pelos demais ministros da Sexta Turma.