Admirável mundo novo?

COMPAROU COM O NAZISMO: Comentarista alemão da ESPN, Gerd Wenzel lembra traumas da 2ª Guerra e vê sinais de totalitarismo no Brasil

Em uma conversa no estúdio da TV UOL, o alemão, que se ordenou pastor evangélico, foi preso na ditadura e virou youtuber, falou sobre o dia em que viu uma bomba durante um jogo de futebol e se mostrou preocupado com o cenário político do Brasil.

“O Brasil está numa encruzilhada de aperfeiçoamento ou degringolação da democracia”, disse ele. “Se nós atentarmos contra a democracia e não lutarmos por ela, não batalharmos por ela, ela vai morrer. E virá outro regime que não sabemos qual é.”

Gerd acostumou-se a verbalizar suas opiniões sobre o país no Twitter, onde amealhou 82 mil seguidores e provavelmente algumas centenas de haters. Com a compra dos direitos de transmissão do Campeonato Alemão pela Fox Sports, Gerd segue comentando na ESPN a Copa da Alemanha. Ele também é colunista do site da TV Deutsche Welle e faz comentários esportivos em um podcast e em um canal do YouTube.

Bola de fogo e um pesadelo de 30 anos

Em 1943, os Aliados expulsaram tropas do Eixo do norte da África e iniciaram a invasão da Itália. No mesmo ano, nascia Gerd Wenzel em Berlim. A guerra logo chegaria à capital alemã na forma de bombardeios norte-americanos. A cidade seria definitivamente conquistada em 1945, forçando a rendição de Hitler e precipitando o fim da 2ª Guerra Mundial.

“A primeira lembrança que eu tenho da guerra é um pesadelo”, conta o comentarista sete décadas depois. “Nesse pesadelo, eu via um avião de guerra, um bombardeiro, se aproximando do lugar onde eu estava. E explodiu numa bola de fogo na minha frente. Anos mais tarde, eu contei esse pesadelo pra minha mãe e ela me disse que isso havia acontecido aos meus dois anos de idade, quando estava no berço, perto da janela, e um avião norte-americano se aproximou de tal forma que se espatifou no prédio da frente.”

“Apesar de não ter me lembrado conscientemente disso, ficou como um pesadelo que perseguiu a minha vida durante mais ou menos 30 anos.”

O futebol numa cidade destruída

“Como é que você joga futebol numa cidade destruída, onde ainda estão recolhendo os escombros?”, pergunta-se ele, as memórias de infância subindo à mente como fumaça.

“Perto de onde eu morava, havia já um descampado, onde a maior parte dos escombros estavam sendo retirados. Improvisamos ali um pequeno campo de futebol.”

“Em um desses jogos, encontramos uma bomba. Eu fui pegar a bola de meia e estava lá uma bomba no meio dos escombros que ainda restavam. Imediatamente, a gente chamou os bombeiros. Moleque você sabe como é. Ficamos de longe, assistindo os bombeiros trabalhando, mas intimamente queríamos ver uma explosão.”

Quase 75 anos depois do fim do conflito, o território alemão ainda convive com ameaças de explosão de bombas do período. Na última segunda-feira (24), a explosão de um artefato deixou uma cratera de dez metros de diâmetro e quatro de profundidade perto da cidade de Limburg, no oeste do país.

A escolha de Herr Wenzel

Em 1945, o exército russo começou a invadir o território alemão. Adolf Hitler, em medida desesperada, convocou idosos e adolescentes para compor suas tropas de defesa. O pai de Gerd, Herbert Wenzel, àquela altura com 50 anos, foi um dos alistados.

“Era uma missão impossível. Havia apenas 200 mil soldados alemães ainda em Berlim, cercados por um exército de 1,5 milhão de soldados soviéticos. Mas meu pai não tinha outra alternativa. Se você não atende a convocação, você é fuzilado imediatamente como traidor.”

“Num dado momento da última defesa em Berlim, ele com fuzil e de uniforme, viu que estava lutando a 200 metros da nossa casa. Então ele pensou: ‘O que eu estou fazendo aqui?’ e abandonou a trincheira, largou o fuzil, tirou o uniforme, chegou em nossa casa e pediu para ser escondido no porão.”

Herr Wenzel ficou cerca de quatro meses escondido em casa, esperando o final da guerra. “Se ele fosse pego pelos soldados russos, seria imediatamente levado à Sibéria”, conta o filho. Após a rendição da Alemanha, Herbert Wenzel trabalharia como almoxarife em uma fábrica metalúrgica e morreria em 1952. Três anos depois, sua viúva fugiria para o Brasil com o único filho do casal.

O Brasil é Madureira

A única coisa que eu sabia sobre o Brasil é que existia um clube chamado Madureira. O Madureira fez uma excursão para países satélites da União Soviética, incluindo a Alemanha Oriental. E eu fui ver o time do Madureira jogar. E o Madureira deu um show de bola. Foi uma coisa de louco. Nós vimos um jogo de futebol como nunca tínhamos visto. Não sabíamos que podia jogar futebol daquela forma.

Gerd Wenzel

Nazismo de esquerda? Ignorância ou má-fé

Sobre a teoria segundo a qual o nazismo seria um movimento ideologicamente de esquerda, o alemão se alinha com a maior parte da historiografia que mostra o contrário.

“Eu quero acreditar que isso seja ignorância pura, ou má-fé, porque basta você ler um pouco a história, para ver que o primeiro inimigo do nazismo na Alemanha era o marxismo. Basta ler o ‘Mein Kampf’, de Adolf Hitler, basta acompanhar toda a literatura sobre a ascensão e queda do 3º Reich, para ver que todos que eram considerados socialistas, comunistas, social-democratas, democratas cristãos e todos que não se alinhavassem com o partido nazista eram considerados esquerdistas.”

Em março, o chanceler brasileiro Ernesto Araújo afirmou em entrevista que o nazismo foi de esquerda, o que provocou reação entre o meio acadêmico e intelectual.

“O que eu vejo hoje no Brasil, nas redes sociais, e também na parte de alguns políticos, o que eu vejo hoje ou há uma ignorância incomensurável sobre a história recente, especialmente sobre a história do nazismo na Alemanha, ou há má-fé para ludibriar os incautos”, afirmou o comentarista alemão.

Sinais de totalitarismo no Brasil: “Na Alemanha começou assim”

Com participação ativa no Twitter, o alemão vem recebendo mensagens de ódio e ameaças por causa de suas ideias.

“Uma vez citei o Paulo Freire e tive uma resposta: ‘Paulo Freire deveria ter sido morto e todos os que apoiam devem ser mortos também’. Pensei em tomar uma atitude, mas simplesmente bloqueei. O Brasil está numa encruzilhada de aperfeiçoamento ou degringolação da democracia. A democracia é um regime que se não for alimentado, vivenciado e praticado no dia a dia, não sobrevive por si mesmo. Ela é muito fraca. Se nós não lutarmos por ela, ela vai morrer.”

Depois de viver as consequências do regime nazista na Alemanha, o comentarista traça paralelos com o momento do país em que vive. “Na Alemanha, a ditadura nazista começou pela exclusão. O totalitarismo começa aí. O primeiro passo é a exclusão. Entendo que estamos nesse momento no Brasil”, afirmou.

“Excluir pessoas de baixa renda das universidades públicas, declarações homofóbicas das mais altas autoridades deste país, que colocam um viés preconceituoso, pejorativo sobre pessoas de outra orientação sexual, a pouca preocupação com o meio ambiente, desconsiderando todos os estudos, pesquisas, as mortes e extinção de centenas de espécies, esse caminho solitário do isolacionismo, do nacionalismo exacerbado. São sinais de que pode desembocar num regime autoritário.”

A fuga de Gerd…

  • Deixa Berlim…

    “Fugi primeiro, com 12 anos de idade e minha mãe fugiu no dia seguinte. Com uma pequena mala, peguei o metrô e fui em direção a Berlim Ocidental. Na última estação de Berlim Oriental havia um controle do metrô, com soldados da Alemanha Oriental para deter quem pudesse estar fugindo. O guarda passou por mim e ficou tudo por isso mesmo.”

  • Chega ao Brasil…

    “O navio fez um stop over no Rio de Janeiro, antes de chegar em Santos. Pela primeira vez comi arroz, feijoada, e de sobremesa recebemos mamão. Eu não sabia que você tem que tirar as sementinhas. Nunca tinha visto mamão na vida. Já comeu sementinha de mamão? Nunca coma, porque é ardido. Foi a minha primeira experiência gastronômica.”

  • Aprende português…

    “A melhor coisa que me aconteceu foi me matricular num colégio na Avenida Paulista com a Rua Augusta. Aprendi português, história e geografia do Brasil, em quatro, cinco meses, pra estudar no colégio brasileiro. Hoje tenho um razoável domínio da língua. Se tivesse ficado em colégio alemão, provavelmente não teria incorporado a cultura brasileira.”

Um pastor alemão no interior de Minas

Aos 18 anos, o jovem Gerd viveu uma experiência espiritual e decidiu que deveria estudar para ser pastor. Seu interesse era, por meio da religião, influenciar a sociedade positivamente e combater injustiças. Ordenado pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil, ele assumiu um pastorado em Governador Valadares (MG) e tentou iniciar um programa de alfabetização de jovens e adultos. O ano era 1967. Isso o levaria a bater de frente com o regime recém-instalado no país. “Mal eu sabia que Governador Valadares é um dos centros políticos e sociais mais conservadores do Brasil.”

“O método novo, na época, era o método de alfabetização do Paulo Freire. Vinha na contramão daquilo que era preconizado pela igreja. Foi feito um processo rápido comigo, do dia para noite. Fui denunciado por pastores da própria igreja ao Dops (Departamento de Ordem Política e Social) de Minas Gerais e aí a minha carreira teológica e eclesiástica nem nasceu. No oitavo mês do meu pastorado, eu já estava fora da igreja.”

Método de Paulo Freire leva à prisão

Gerd chegou a ser preso três vezes por agentes da ditadura militar. Na primeira prisão, ficou uma semana incomunicável em Belo Horizonte. “Me jogaram numa cela onde já havia um preso, um bêbado estava cantando, o chão todo vomitado.”

“Foi um interrogatório de, mais ou menos, dez horas, em que tentava-se vincular a minha atuação ao Partido Comunista, ao regime da Alemanha Oriental ou à própria União Soviética. Não havia prova nenhuma. O nosso único pecado era alfabetizar os analfabetos com o método Paulo Freire. Nenhuma outra ligação com o movimento armado que estava surgindo no Brasil para combater a ditadura.”

O alemão foi preso outras duas vezes, ambas em São Paulo. Nos dois casos as circunstâncias foram parecidas: questionado por agentes da Polícia Federal e do Dops, ele conseguiu provar que seu inquérito havia sido arquivado em Minas Gerais e foi liberado no mesmo dia.

“A mão esquerda não sabia o que fazia a mão direita. Muitos sofreram novas prisões por conta da desorganização do próprio aparelho de repressão.”

Arquivo PessoalArquivo Pessoal

Na primeira transmissão na TV, achou que seria demitido

Depois que o inquérito por subversão foi arquivado, Gerd passou a trabalhar em multinacionais alemãs. Em 1991, quando a TV Cultura comprou os direitos de transmissão do Campeonato Alemão para o Brasil, a farmacêutica Bayer, que patrocinava a competição, precisava de alguém para traduzir o material, que chegava a São Paulo na língua da matriz.

Foi aí que Gerd Wenzel conheceu o jornalista José Trajano, que se tornaria seu grande mentor na nova profissão. Mas o pioneirismo cobrou seu preço, e a dupla passou vergonha no primeiro dia.

“Se acontece na Alemanha o que aconteceu comigo na minha primeira transmissão, eu seria demitido imediatamente”, lembra o comentarista. “Nós não tínhamos material informativo sobre o time. Eu só tinha visto rapidamente quais eram os uniformes do Hansa Rostock e do Duisburg. E eu nunca tinha ouvido falar de Hansa Rostock e Duisburg. Na hora de entrar em campo, os times entraram com esses uniformes, só que com seus segundos uniformes. E o segundo uniforme do time A era parecido com o primeiro do time B, e vice-versa.”

“Durante 20 minutos do primeiro tempo, nós fizemos uma transmissão invertendo os times. Teve uma boa alma que nos ligou no telefone. O [narrador] Cacá Fernando veio correndo: ‘Gerd, tá tudo ótimo, maravilha, ótima a sua participação, só que tem um detalhe, eu acho que vocês tão trocando os times’. O Trajano ficou uma vara.”

O alemão achou que seria demitido. “Mas o pessoal curtiu a forma como administramos isso. Saímos dali, comemos uma feijoada, tomamos uma caipirinha, cerveja, chopinho, tudo numa boa.”

“Tchau, tchau” se incorporou ao personagem

O uso de bordões voltou à moda dos narradores e comentaristas esportivos da TV. No caso de Gerd Wenzel, a maneira de se despedir das transmissões virou sua marca registrada. Após cada partida ou programa, o alemão encerra sua participação com um “tchau, tchau” esticando a última palavra de maneira dramática.

“É uma obra conjunta minha com o [narrador] Rogério Vaughan. Ele me deu a ideia: ‘Faz o tchau, tchau como se você tivesse se despedindo de alguém em uma estação de trem ou num aeroporto. Alonga esse tchau, tchau’. Já tentei me libertar desse tchau, tchau 500 vezes, não dá. Acabou fazendo parte do meu personagem”, afirma Gerd.

Na idade em que muitos gostariam de ficar em casa e descansar, o comentarista continua fazendo planos, inclusive na tentativa de profissionalizar seu canal no YouTube.

“Esses anos todos que eu tenho nas minhas costas são uma experiência que eu não posso guardar só para mim. Quero compartilhar. Essa é a minha motivação. Não quero ficar na frente de um computador o dia inteiro, regando o jardinzinho e, de vez em quando, fazer um churrasco em casa pros amigos. Não me vejo assim. Enquanto tiver energia, enquanto tiver condições físicas e mentais, quero dar a minha contribuição. É isso que me motiva.”

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Fonte: UOL
Créditos: ADRIANO WILKSONDO