Rubens Nóbrega

Foi uma surpresa das grandes para todo mundo a extraordinária mudança no comportamento de Justo Firmino. Ele chegou completamente mudado, ontem, na repartição.

Estava mesmo irreconhecível. Lembrava nem um pouco o sujeito de cara fechada que parecia permanentemente com raiva por ter sido nomeado para um cargo de quinto escalão na Secretaria.

Tinha dia que ele, chefe da Divisão de Análise de Processos, sequer dava bom dia aos colegas. Passava direto pro seu birô e, sem falar com seu ninguém, sentava, tirava os processos da gaveta e começava a trabalhar.

O trabalho de Justo consiste em ler algumas folhas, redigir despacho ou parecer, carimbar, assinar e enviar o processo para outro birô ou setor, onde a papelada recebe novo carimbo, nova assinatura e segue adiante, na mesma pisada.

Mas ontem, sorridente e falante, ele só faltou beijar todas as pessoas que encontrou desde a fila do elevador e passou quase a manhã inteira cantarolando aquela de Lulu Santos.

– Nada do que foi seráDe novo do jeito que já foi um diaTudo passaTudo sempre passaráA vida vem em ondasComo um marNum indo e vindo infinito…

Ele só parou de cantar por uns cinco segundos para ouvir o colega do birô da frente lhe dizer que o diretor do Departamento, na sala ao lado, mandara o contínuo saber “que cantoria era aquela”.

Justo deu pausa na canção apenas para perguntar quem estava se incomodando. Logo após ouvir a resposta, na maior tranqüilidade voltou a cantar. E dessa vez mais alto:

– Tudo que se vê não éIgual ao que a genteViu há um segundoTudo muda o tempotodoNo mundo…

Não deu dois segundos, o diretor do Departamento abriu a porta de sua sala, olhou com olhos de repreensão no sentido de Justo e botando força na voz repreendeu o cantante na frente de todos e todas.

– O senhor não tem mais o que fazer, não, Seu Firmino, além de ficar perturbando o trabalho dos outros com essa zoada?
Justo levantou-se, foi até bem perto do diretor e, olho no olho, mandou ver, mais alto ainda:

– Não adianta fugirNem mentirPra si mesmo agoraHá tanta vida lá foraAqui dentro sempreComo uma onda no marComo uma onda no marComo uma onda no mar…

E se mandou. Pego de surpresa com tamanho atrevimento, o diretor foi direto falar com o secretário e pediu a cabeça de Justo Firmino. Mas o secretário…

– Calma, amigo, de agora em diante a gente vai ter que ter paciência com esse pessoal – ponderou.

– Como calma, secretário? De que pessoal o senhor tá falando? Vai ficar por isso mesmo, é? E eu vou ficar desmoralizado, é? – reagiu, irado, o diretor.

Aí foi a vez de o secretário endurecer a voz, o semblante e encerrar a conversa com uma perguntinha-chave:
– Por acaso você sabe quem botou Seu Firmino aqui?

SABEDORIA ACERCA DAS LEIS

Tenho a felicidade de ter, entre meus qualificados e valiosos colaboradores, alguns que são verdadeiros (e bem sucedidos) caçadores de tesouro.

Vejamsó, adelante, como diria o monarca, o que o amigo Vau encontrou e me mandou ontem.
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Em palestra registrada por Xenofonte, Alcibíades discutia com Péricles, o que viria ser lei e quando esta existia ou quando não existia:

– Que vem a ser lei? – indaga Alcibíades.

– A expressão da vontade do povo. – responde Péricles.
– Mas o que é que determina esse povo? O bem ou o mal? – replica−lhe o sobrinho.
– Certo que o bem, mancebo.
– Mas, sendo uma oligarquia quem mande, isto é, um diminuto número de homens, serão, ainda assim, respeitáveis as leis?
–Sem dúvida.
– Mas, se a disposição vier de um tirano? Se ocorrer violência, ou ilegalidade? Se o poderoso coagir o fraco? Cumprirá, toda via, obedecer?
Péricles hesita; mas acaba admitindo:
– Creio que sim.
– Mas então, o tirano, que constrange os cidadãos a lhe acatarem os caprichos, não será, esse sim, o inimigo das leis? – insiste Alcebíades.
– Sim; vejo agora que errei em chamar leis às ordens de um tirano, acostumado a mandar, sem persuadir.
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Vau informa que esse texto foi pinçado do livro “Orações aos Moços”, de Rui Barbosa. Escrito, originalmente, para o discurso de paraninfo da turma concluinte de Direito em 1920, da Faculdade de Direito de São Paulo.