Com uma das maiores populações carcerárias do mundo, perdendo apenas para Estados Unidos e China, o Brasil teria um número ainda maior de presos se todas as ordens judiciais de prisão fossem de fato cumpridas. Levantamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mostra que existem hoje no país 143.967 mandados de prisão em aberto. São pessoas condenadas, ou com determinação para aguardar o julgamento atrás das grades, mas que estão em liberdade pelos mais diversos fatores — o principal deles, a falta de organização do poder público.
Como existem pessoas com mais de um mandado de prisão em aberto, não é possível saber quantos investigados estão hoje indevidamente em liberdade. Do total de ordens de prisão não cumpridas, a maioria, 136.952, se refere a pessoas procuradas. Isso significa que, depois de emitida a ordem de prisão, o investigado nunca foi capturado. Os outros 7.015 mandados são de foragidos: ou seja, pessoas que já estiveram presas um dia, mas fugiram. Ou, ainda, que estavam no regime semiaberto e saíram durante o dia com autorização judicial, mas nunca retornaram para a prisão, como deveriam ter feito na noite do mesmo dia. Segundo o Ministério da Justiça, há 726.712 presos no Brasil.
Há também nesse grupo de foragidos os beneficiados com os chamados “saidões”: o direito de sair da cadeia em um feriado prolongado, desde que o detento se comprometa a retornar ao fim do período. Mas muitos não voltam para o presídio e não são encontrados depois. Considerando números absolutos, o estado com maior número de mandados de prisão não cumpridos é o Rio de Janeiro, com 34.058. Existem no estado 74.875 detentos, segundo o CNJ.
A situação dessas ordens judiciais é atualizada no cadastro pelas Varas de Execução Penal de todo o país. O número de mandados de prisão em aberto ainda pode aumentar. Na última sexta-feira, faltavam no banco de dados informações relativas ao Rio Grande do Sul e Minas Gerais. Os números do Paraná e de São Paulo ainda estavam incompletos. A expectativa é de que os dados nacionais estejam fechados até julho.
Ontem, O GLOBO mostrou que 6.638 pessoas morreram nas cadeias entre 2014 a 2017, uma média de mais de quatro mortes por dia.
ESTADOS DESCONHECEM NÚMEROS
Os números compõem o Banco Nacional de Monitoramento de Presos (BNMP), idealizado na gestão da ministra Cármen Lúcia, presidente do CNJ e também do Supremo Tribunal Federal (STF). Depois que estiver pronta, a plataforma vai ser atualizada em tempo real: todos os mandados de prisão serão gerados pelos juízes de execução no próprio programa, bem como as ordens de soltura dos presos.
Na análise proporcional dos números, é possível identificar que algumas unidades da federação têm situação mais crítica do que outras. Caso as autoridades do Pará, por exemplo, conseguissem capturar hoje todos os procurados e foragidos, o número de presos do estado poderia chegar perto do dobro. Existem no local 15.565 detentos e, ao mesmo tempo, 13.664 ordens de prisão em aberto.
A situação também é alarmante no Piauí, que conta com 4.426 presos e 3.053 mandados de prisão não cumpridos. Em Alagoas, existem 4.503 presos e 3.041 ordens de prisão em aberto. Em São Paulo, embora os dados ainda estejam incompletos, com 66% do total, existem ao menos 20.368 ordens de prisão não cumpridas. Em contrapartida, o número de presos cadastrados até agora é de 150.995.
O banco de dados do CNJ tem gerado números que nem mesmo as secretarias de Segurança dos estados, responsáveis pela captura de criminosos, conheciam. Vários secretários já procuraram o Conselho para saber os detalhes sobre os mandados de prisão em aberto, para agilizar o cumprimento das ordens. Segundo integrantes do CNJ, os governantes estariam temerosos com as esperadas críticas da opinião pública, diante de informações tão alarmantes.
Quando o banco de dados estiver completo, Cármen Lúcia deverá convocar uma reunião com secretários de todo o país com o objetivo de criar uma estratégia para o cumprimento mais eficaz dos mandados de prisão. Hoje, muitas unidades da federação não têm traçadas as prioridades na hora de estabelecer quais foragidos ou procurados capturar primeiro. A ideia é colocar no início da fila acusados de crimes mais graves, além de pessoas que são alvo de mais de um mandado de prisão.
Hoje, alguns estados estabelecem uma espécie de bônus por produtividade para policiais, com base no número de criminosos capturados. Para alcançar a meta numérica, muitos agentes se empenham em cumprir as ordens de prisão mais fáceis, expedidas em decorrência de crimes mais leves. Isso porque esse tipo de criminoso é mais fácil de ser capturado, porque, pela lógica, estará mais acessível que os bandidos perigosos.
Essa metodologia pode gerar disparidade na análise dos dados. Por exemplo: um estado com poucos mandados de prisão em aberto pode ter um alto número de criminosos perigosos indevidamente em liberdade. E um estado com muitos mandados de prisão em aberto por ter apenas investigados por crimes mais brandos em liberdade. Os dados detalhados dos crimes que geraram as ordens de prisão não foram fornecidos pelo CNJ.
Uma outra forma comum de cumprir esses mandados em aberto é em blitzes de trânsito, ao sabor do acaso. O agente de trânsito, ao mandar um carro parar, checa no sistema estadual se o motorista é procurado da Justiça. Em caso positivo, leva a pessoa presa na hora. Outra forma é quando a pessoa vai à delegacia por outro motivo — por exemplo, se for vítima de algum roubo, ou se for levada por envolvimento em alguma briga na rua. Nesses casos, os agentes também checam a ficha da pessoa, e ela acaba ficando por lá se for alvo de algum mandado de prisão.
PARA CNJ, DADOS DO GOVERNO ESTÃO SUPERESTIMADOS
Embora ainda não esteja completo, o levantamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) revela que o número de detentos do país tem sido superestimado. Até agora, foram cadastrados 494.972 presos. A expectativa é de que o número total, que deve ser fechado até julho, não chegue a 700 mil. Em dezembro, um relatório do Sistema Integrado de Informações Penitenciárias (Infopen), do Ministério da Justiça, mostrou que havia 726.712 presos no país em junho de 2016.
A disparidade entre o número do CNJ e o do ministério vem da metodologia de contagem dos detentos. Pelo método antigo, em alguns casos, o preso era posto em liberdade, mas a instituição não o retirava imediatamente do sistema. Em outras situações, há transferência para outro estado, e o preso é contabilizado duas vezes. Há, inclusive, presídios que contam os detentos de acordo com o número de refeições fornecidas no local.
A nova forma de contagem é mais precisa porque é feita a partir de um único parâmetro: as informações das Varas de Execução Penal de todo o país. São contabilizados os mandados de prisão realmente cumpridos, as decisões judiciais que libertaram presos e também as transferências de estabelecimento.
O Rio de Janeiro registra uma das maiores discrepâncias entre os dois cadastros: foram contabilizados 50.219 presos pelo Ministério da Justiça, e 74.875 pelo CNJ. Os dados de Minas Gerais, São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul ainda não foram incluídos no levantamento do Conselho, denominado Banco Nacional de Monitoramento de Prisões (BNMP).
Do total de presos cadastrados em todo o país até agora, 204.863 são provisórios — ou seja, não foram condenados judicialmente e estão presos para a garantia das investigações, ou por serem considerados muito perigosos. Este grupo corresponde a 41,44% do total, um percentual “compatível com padrões internacionais”, segundo o supervisor do Departamento de Fiscalização e Monitoramento do Sistema Carcerário do CNJ, Marcio Schiefler. Os dados do Ministério da Justiça davam conta de que os presos provisórios eram 292.450, que correspondem a 40,2% do total contabilizado pelo mesmo órgão.
Dos presos cadastrados até agora pelo CNJ, 289.507 são condenados. Neste grupo, há 162.361 em execução definitiva da pena — ou seja, com sentença transitada em julgado, já sem possibilidade de recorrer da condenação. Os outros 127.146 estão em execução provisória da pena. Essas pessoas já foram sentenciadas por um juiz, mas ainda podem recorrer da condenação.
SISTEMA DARÁ ALERTA
Os dados do CNJ também mostram que, até sexta-feira, havia no cadastro 470.817 homens presos e 24.569 mulheres.
O cadastro trará algumas mudanças imediatas: se um preso estiver perto de receber um benefício, ou de ser solto, o juiz receberá um alerta do sistema. Hoje, existem detentos dentro dos presídios cumprindo penas que, no papel, já terminaram. Será possível saber, por exemplo, quem está preso há mais de 180 dias sem ter sido sentenciado por um juiz.
— Estamos vivendo um mutirão nacional de todos os presos, permanentes e provisórios — afirmou Schiefler.
O Ministério da Justiça afirmou que a “responsabilidade pelo fornecimento dos dados” é das unidades da federação. A nota acrescenta que o levantamento é feito com “dados consolidados” de cada presídio.
O Ministério da Justiça afirmou que “as metodologias aplicadas são diferentes” entre as contagens. Que o “levantamento do Depen abrange os regimes fechados, aberto e semiaberto, enquanto o do CNJ se restringe ao regime fechado”.
Em nota, disse ainda que “os dados do Depen abrangem dados consolidados de custodiados mantidos em carceragens da segurança pública e custodiados mantidos pelos órgãos de administração penitenciária, sejam eles sem condenação ou condenados do regime fechado, semiaberto e aberto”.
O Ministério também notou que “de acordo com o Infopen 2015, mais de 400 mil custodiados entraram no sistema e cerca de 300 mil saíram naquele ano. Isso demonstra que a população prisional não é um número estático e imutável, trata-se de um dado dinâmico, com grande oscilação diária”.
Fonte: O Globo
Créditos: O Globo