Chamem Cazuza, já!

Nonato Guedes

Nota-se, na conjuntura brasileira, hoje, uma preocupação de debater e resolver, via Congresso ou Supremo, questões polêmicas que estão represadas há muito tempo, sobretudo em relação a costumes sociais. O debate não é racional. É azeitado pelos lobbies, por torcidas organizadas, que pressionam congressistas e ministros a serem favoráveis a isso ou aquilo, de afogadilho, sem uma análise mais acurada das conseqüências, dos efeitos que possam advir. A aprovação na Câmara Federal da apelidada Bolsa-Estupro é um exemplo dessa farândula que se instalou no país, com eco nas mídias formais e nas mídias sociais, onde o território é livre para a exposição absoluta.

A apologia massiva da união homoafetiva, com atos públicos em capitais como São Paulo, mostra a que ponto as coisas chegaram. A cantora Daniela Mercury foi a atração de um evento pela singularidade de exibir sua “mulher”, uma jornalista com quem mantém relacionamento há algum tempo. Li uma opinião de Agnaldo Timóteo sobre o espetáculo proporcionado por Daniela e companheira. Ele desceu o malho, opinando que se tratou de mera jogada de marketing, de ofensiva midiática, lembrando que no final das contas a mudança de opção de Daniela é uma farsa, já que ela manteve relacionamentos com homens e com eles teve filhos. Nessa época, esquivava-se de fotógrafos indiscretos. Lutava para proteger sua privacidade, e por extensão a privacidade de quem a cercava. De repente, a cantora baiana se expõe de corpo inteiro na difusão da relação homoafetiva com a jornalista. Aí tem, evidentemente, por mais que se ponha um pé atrás diante das opiniões de Agnaldo, pelas poses machista e reacionária que adotou em priscas eras sobre temas mais ou menos assemelhados.

Ninguém há de contestar que vivemos transformações aceleradas em guinada de 360 graus. Mas no debate sobre, vá lá que seja, a “Bolsa Estupro”, ficou evidenciado que não há mesmo ideologia por trás dessas orquestrações. A polêmica era sobre quem era conservador ou liberal. Especialistas em ciência política têm repetido que, no Brasil, políticos não gostam muito de rótulos ideológicos, principalmente quando confinados ao maniqueísmo esquerda-direita ou vice-versa. Quando fustigados mais intensamente, acabam se definindo como esquerdistas. Em inúmeros casos, o currículo deles não corresponde ao ideário apregoado, e também é notável como eles estão desinformados sobre o “que está acontecendo de novo”.

Ideologia no Brasil desapareceu muito antes da queda do Muro de Berlim ou do desmoronamento de regimes socialistas que aqui eram tratados como “o farol da humanidade”. Cuba já saiu de moda há muito tempo, a não ser para grupos empedernidos de fidelistas que não toleram a hipótese de ficar sem um ícone para chamar de seu. A Rússia deixou de guiar comunistas desde a perestroika e a glasnot de Gorbachev. Ou talvez antes, quando da denúncia, em tom de autocrítica, dos crimes cometidos durante o reinado de Stalin. Até a minúscula mas valorosa Albânia dá a sensação de ter sumido do mapa, de ter se eclipsado como modelo ideal a ser cortejado.

Lembro dos tempos em que, em Cajazeiras, mesmo sob o tacape da censura do regime militar, eu ousava ouvir, numa calçada da rua Padre Rolim, a transmissão em português do noticiário da rádio Tirana da Albânia. Todas as loas, é claro, se dirigiam ao “camarada” Enver Hoxha, uma espécie de guru iluminado, que conduzia com vigor a resistência ao imperialismo representado pelos Estados Unidos e pelos sócios europeus. Da Albânia espargiam sinais para os órfãos de inspiração, para os adeptos de ídolos de pés de barro, como esse tal “camarada” Enver Hoxha. O que me deixava encucado, na lavagem cerebral que se espalhava pelas ondas hertzianas, era a denominação da emissora estatal. Rádio “Tirana”. Convenhamos: o nome sugere uma opressão de dar dó, de desestimular qualquer pessoa com um pouquinho mais de tirocínio a aderir a essas causas ou a se imolar no altar das desilusões. Porque o comunismo albanês acabou desiludindo muita gente aqui no Brasil.

Em certa medida, a crise de valores com que nos debatemos é pedagógica. Fornece luzes para uma avaliação mais rigorosa de dogmas que estão sendo vendidos no comércio. Liberta, também, corações e mentes dos que estão interessados, da obrigação de entoar mantras, repicar ladainhas, hastear bandeiras, como autômatos e não como cidadãos participantes e conscientes da sua Cidadania. O Brasil se dá ao luxo de ter partidos que não são contra nem a favor do governo, como o PSD. É necessário acrescentar algo mais, ou é redundante? Precisamos gritar, como Cazuza: “Ideologia? Quero uma pra viver”. Ele faz falta, muita falta!