O Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE) iniciou, nesta quinta-feira, 3, a primeira audiência de instrução e julgamento do “Caso Miguel”. A criança de 5 anos morreu após cair do prédio de luxo em que sua mãe, a ex-empregada doméstica Mirtes Renata, trabalhava, no Recife.
A audiência, que acontece seis meses e um dia após a morte do menino, em 2 de junho, prevê o interrogatório de Sari Corte Real, ex-patroa de Mirtes, e ouvida de testemunhas, como a mãe e o pai de Miguel e a avó da criança, Marta Santana.
A sessão começou às 9h30, na 1ª Vara de Crimes contra a Criança e o Adolescente da Capital, na Boa Vista, no Centro do Recife. Por volta das 10h, foi iniciada a ouvida da primeira testemunha de acusação. Cerca de 50 minutos depois, Mirtes informou à imprensa através de mensagem via aplicativo que havia sido a única a depor até então.
Até as 13h30, quatro testemunhas de acusação foram ouvidas na audiência, que é conduzida pelo titular da unidade, o juiz José Renato Bezerra. A segurança das imediações foi reforçada pela Polícia Militar.
O pai de Miguel Otávio, o agricultor Paulo Inocêncio, chegou pouco antes das 9h ao local da audiência. Muito emocionado, ele afirmou apenas querer que seja feita justiça pelo que ocorreu com o filho. A mãe do menino não falou com a imprensa antes de entrar no prédio.
Outros parentes acompanharam do lado de fora, também com pedidos de que seja feita justiça. “Ela [Sari] vai responder presa, porque ela tem que pagar pelo que ela fez. Ela podia ter tirado ele [Miguel], ligado para a minha sobrinha [Mirtes]. Se fosse filho dela, ela não faria o que ela fez”, disse a técnica de enfermagem Sandra Maria Santana, tia de Mirtes.
Representantes do Instituto Menino Miguel, da Universidade Federal Rural de Pernambuco, exibiram uma faixa em frente ao local da audiência. Faixas com os dizeres “vidas negras importam” foram levadas por manifestantes, que ficaram na rua em frente ao fórum.
Durante a manhã, integrantes de organizações como a Rede de Mulheres Negras de Pernambuco fizeram discursos em frente ao local em que acontece a audiência. Eles relembraram o caso Miguel e pediram o fim da violência contra os negros. Alguns dos participantes declamaram poesias sobre a luta contra o racismo.
O caso chegou à Justiça após o Ministério Público de Pernambuco (MPPE) denunciar a primeira-dama de Tamandaré e ex-patroa de Mirtes, Sari Corte Real, por abandono de incapaz que resultou em morte, com agravantes de cometimento de crime contra criança e em ocasião de calamidade pública, devido à pandemia da Covid-19.
A audiência de hoje, 3, segundo o TJPE, busca interrogar Sari e ouvir testemunhas indicadas pelo MPPE e pela defesa. Primeiro são ouvidas as testemunhas de acusação. Na sequência as de defesa e, depois, tem início o interrogatório da ré.
Está prevista a ouvida de nove testemunhas de acusação, arroladas pelo MPPE. Dessas, uma deverá ser ouvida através de videoconferência. A defesa arrolou nove testemunhas, sendo que quatro dessas serão ouvidas pelo procedimento da carta precatória, que é utilizada pela justiça quando existem pessoas que precisam depor em municípios diferentes.
Nesse processo, o juiz da comarca onde o processo tramita envia uma solicitação para outro juiz, que deve fazer o processo de intimação do réu ou testemunha e também colher o seu depoimento, para depois repassá-lo ao juiz do caso.
Os nomes das testemunhas convocadas para esta quinta não foram repassados pela Justiça. “A decisão leva em consideração a preservação da identidade e a privacidade das pessoas que vão testemunhar na referida audiência, pessoas estas que, inclusive, não configuram partes no processo”, disse o TJPE, em nota.
Depois das fases de Instrução e Julgamento do Processo, o MPPE e a Defesa devem apresentar as alegações finais. Em seguida, o Juízo da 1ª Vara de Crimes contra a Criança e o Adolescente da Capital profere a decisão.
Além da esfera criminal, a mãe, o pai e a avó de Miguel pediram na Justiça uma indenização por danos materiais e morais, totalizando R$ 987 mil, a Sari Gaspar Corte Real.
Caso Miguel
Miguel caiu do 9º andar do edifício Píer Maurício de Nassau, no bairro de Santo Antônio, no Centro do Recife, no dia 2 de junho. A queda aconteceu após a mãe dele deixá-lo com Sari Corte Real para passear com Mel, a cadela da família que a empregava.
No dia da morte de Miguel, Sari foi presa em flagrante por homicídio culposo, quando não há intenção de matar. Ela pagou uma fiança de R$ 20 mil para responder ao processo em liberdade.
Em 1º de julho, ela foi indiciada pela polícia por abandono de incapaz que resultou em morte. Esse tipo de delito é considerado “preterdoloso”, quando alguém comete um crime diferente do que planejava cometer.
Investigação policial
Segundo a polícia, a criança saiu do apartamento de Sari para procurar a mãe e foi até os elevadores do condomínio. Imagens das câmeras de segurança mostram que, por pelo menos quatro vezes, a primeira-dama de Tamandaré conseguiu convencer Miguel a sair do elevador social e de serviço.
Por meio de perícias, o Instituto de Criminalística de Pernambuco (IC) constatou que Sari Corte Real apertou a tecla do elevador que dá acesso à cobertura às 13h10, saindo do elevador em seguida. O laudo contradiz a versão dada pelo advogado de defesa dela.
O elevador parou no 9º andar, e a criança seguiu em direção a um corredor. Depois, parou na frente da janela da área técnica, escalou um vão e alcançou uma unidade condensadora de ar. Miguel tinha 1,10 metro e a janela, 1,20 metro. Marcas das sandálias que a criança usava atestaram que ele ficou em pé na condensadora.
Para descer de lá, Miguel pisou em um segundo equipamento do mesmo tipo e se dirigiu a um gradil que tem função estética. A criança escalou as grades e, ao chegar ao quarto “degrau”, se desequilibrou e caiu.
A perícia descartou a hipótese de que alguém estivesse com a criança no 9º andar. Para isso, foi calculado o tempo em que o garoto saiu do elevador e caiu no térreo: 58 segundos. Também não havia vestígios de outra pessoa no corredor em que a criança entrou.
Protestos e homenagens
O caso ganhou repercussão nacional, com manifestações de políticos e artistas na internet e criação de um abaixo-assinado virtual com mais de 2,5 milhões de assinaturas pedindo justiça.
No dia 12 de junho, durante um ato em frente ao prédio de onde Miguel caiu, manifestantes levaram cartazes com pedido de justiça e caminharam até a delegacia onde o caso é investigado. Eles exigiram que a ex-patroa da mãe do menino seja punida por homicídio doloso, quando há intenção de matar, e não culposo, como entendeu a polícia.
Em 9 de junho, artistas pediram justiça em um protesto em barcos no Rio Capibaribe, no Recife. Na véspera, 8 de junho, uma missa de sétimo dia foi celebrada virtualmente devido à pandemia da Covid-19.
No dia 7 de junho, outra homenagem a Miguel foi feita, mas em Tamandaré. Em 6 de junho, uma pintura com o rosto do menino foi feita na frente do prédio onde ocorreu o acidente. Em 5 de junho, um protesto reuniu centenas de pessoas em frente ao prédio onde vive a família dos ex-patrões de Mirtes, com forte participação do movimento negro.
Em julho, parentes e amigos da família de Miguel fizeram uma passeata pelo Centro do Recife. No ato, o grupo buscou pressionar o Ministério Público de Pernambuco (MPPE) para dar prosseguimento ao caso, oferecendo denúncia à Justiça.
Funcionárias-fantasma
No dia 1º de julho, o Ministério Público de Pernambuco (MPPE) entrou com uma ação civil pública contra o prefeito de Tamandaré, Sérgio Hacker (PSB), por improbidade administrativa. É que o gestor contratou a mãe e a avó de Miguel como servidoras públicas, pagas com dinheiro do município, embora elas trabalhassem na casa da família.
Em junho, o Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco (TCE-PE) confirmou que a mãe e a avó de Miguel eram contratadas da Prefeitura de Tamandaré. Durante a apuração do caso, foi descoberta outra funcionária-fantasma que prestava serviços particulares à família do prefeito.
Os técnicos do TCE fizeram uma visita à prefeitura de Tamandaré e constataram a contratação de Mirtes e Maria, além de Luciene Neves, que trabalha na casa de praia do prefeito. Segundo o conselheiro do TCE, Carlos Porto, isso implica em improbidade administrativa por estar sendo usado servidores com recursos públicos em trabalhos particulares.
O prefeito Sérgio Hacker afirmou, na época da morte de Miguel, em nota, que forneceu documentos ao TCE e ao Ministério Público de Pernambuco que demonstram que não houve prejuízo aos cofres públicos. Disse, ainda, que continuaria contribuindo com as investigações.
Fonte: G1
Créditos: Polêmica Paraíba